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   Porto Alegre, quinta-feira, 28 de março de 2024

   
A atuação do Ministério Público na área ambiental

 

História do Palácio

O Memorial do Ministério Público nasceu em agosto de 2000 como Projeto Memória. Em abril de 2003, recebeu o nome de Memorial. Uma das suas primeiras tarefas foi a coleta de entrevistas para a organização de um banco de história oral e para a sua publicação. Nascia a coleção Histórias de Vida do Ministério Público do Rio Grande do Sul.

Os primeiros livros foram publicados em 2001. Com os subtítulos de “Rememorações para o Futuro” e “Os alicerces da construção”. A ênfase era no resgate das memórias dos membros mais antigos da instituição. Através dos depoimentos, conhecemos o Ministério Público das décadas de 1930 e 1940. O método escolhido foi o de "histórias de vida". Segundo a professora Loiva Otero Félix, responsável na época pelo projeto, esse método foi considerado por ser "um caminho intermediário entre o modelo tradicional de entrevista fechada, em que o entrevistado responde a um conjunto de questões elaboradas de igual forma para vários entrevistados, e o de entrevista aberta, em que as perguntas nascem ao sabor das questões narradas" (FÉLIX, 2001, p. 33-34).

No primeiro volume foram publicadas 13 entrevistas de membros que ingressaram no Ministério Público entre as décadas de 1930 e 1950 [1]. No segundo, foram publicados mais 13 depoimentos de ingressos entre as décadas de 1950 e 1970.

O terceiro volume foi publicado em 2005. Algumas alterações foram feitas. Manteve-se e método de "histórias de vida". Adotou-se, todavia, um viés temático. Além das perguntas a respeito das origens familiares, escolaridade, opção pela carreira jurídica e ministerial, elegeu-se um tema que norteou os depoimentos. No terceiro volume, foi a mulher no Ministério Público. Foram publicadas 16 entrevistas de mulheres ligadas à instituição: 11 membros, duas servidoras e três esposas de membros. Um diferencial em relação aos dois primeiros volumes foi a introdução da textualização. A textualização consiste na transposição da linguagem oral para escrita, com supressão de repetições, estruturação de frases e parágrafos, sem, todavia, alterar o conteúdo da entrevista. Muitas vezes, os depoentes, antes de aprovarem as entrevistas, e ao se depararem com a linguagem falada, a estranham, e tendem a suprimir passagens importantes ou enxertar textos escritos, alterando o teor do que foi narrado. A textualização evita que isso ocorra e facilita o processo de aprovação da entrevista.

O quarto volume veio em 2006. O recorte temático foi a participação dos membros do Ministério Público na Assembleia Constituinte de 1988. Foram publicadas 11 entrevistas: seis de membros do Ministério Público gaúcho; quatro de membros do Ministério Público paulista; e uma de um deputado constituinte. A importância do tema motivou uma nova publicação, em 2008, alusiva aos 20 anos da Assembleia Constituinte. Foram então publicados 11 depoimentos: sete de membros do Ministério Público do Rio Grande do Sul; dois de membros do Ministério Público paulista; e dois de políticos cujas ações se relacionaram diretamente à história institucional.

Em 2009, foi publicado o sexto volume da série Histórias de Vida do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Dessa vez, o tema escolhido foi a Corregedoria-Geral, já que 2009 marcou os cinquenta anos de sua fundação. Foram publicadas dez entrevistas, todas de ex-Corregedores-Gerais do Ministério Público.

No ano de 2010, o tema escolhido foi a atuação dos promotores no Tribunal do Júri, rememorada por dez promotores, em alguns casos que marcaram a história do Rio Grande do Sul por sua repercussão como o assassinato de Eliete Grimaldi por Olímpia Mena Zen em 1980 ou o crime da gangue da Matriz em 1986.

Em 2017, a coleção Histórias de Vida do Ministério Público do Rio Grande do Sul está de volta com o tema “Atuação do Ministério Público na Área Ambiental”. O presente volume reproduz depoimentos de 12 membros do Ministério Público gaúcho. As entrevistas versam principalmente a respeito da atuação dos promotores na área ambiental, abordando também aspectos legislativos, evolução institucional, questões mais importantes, e desafios atuais.

O termo meio ambiente é, sem dúvida, um dos mais repetidos na contemporaneidade. Reportagens, documentários, livros, artigos, Organizações não Governamentais - ONGs -, museus, etc., são dedicados ao tema. Nas campanhas políticas, no Brasil e no mundo, é uma das matérias mais cobradas dos candidatos. Tragédias como a recente em Mariana, Minas Gerais, nos recordam das consequências de negligenciá-lo. Essa ubiquidade nos faz esquecer o quão recente é a atenção dada às questões ambientais. Foi na década de 1970 que a velocidade de exploração da natureza e as primeiras grandes catástrofes decorrentes da utilização predatória de recursos ensejaram preocupação internacional com o tema [2].

A partir desse momento, os ordenamentos jurídicos dos diversos países passaram a dar atenção à matéria. No Brasil, de acordo com Marchesan, Steigleder e Cappelli, o Direito Ambiental aparece como ramo autônomo somente a partir de edição da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente em 1981. Até essa data, não havia um conceito amplo de meio ambiente, sendo ele tratado “pelo direito privado, através do direito de vizinhança, ou de providências legais e administrativas setoriais, tomando os bens ambientais de forma estanque, sem que entre eles houvesse alguma concatenação” (MARCHESAN, STEIGLEDER, CAPPELLI, 2013, p. 18).

As autoras consideram que o período republicano brasileiro pode ser dividido em três fases com respeito à tutela ambiental: a) 1889 a 1981: formação do Direito Ambiental; b) 1981-1988: consolidação do Direito Ambiental; c) a partir de 1988: fase contemporânea. No período de formação, o meio ambiente era tratado por intervenção estatal no âmbito do direito público ou por regras de direito privado. “Não se cogita de um direito difuso sobre um bem pertencente a todos, mas vigora a ideia de que o meio ambiente é res nullius” (MARCHESAN, STEIGLEDER, CAPPELLI, 2013, p. 26).

O período de consolidação iniciou com a publicação da Lei nº 6.938 de 31 de agosto de 1981, Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, uma Lei marco, nas palavras de Sílvia Cappelli. Editada no período da ditadura militar, a lei contemplava um instrumental inovador e descentralizador, estabelecendo princípios e objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente, o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) e os instrumentos da política ambiental. A lei define no inciso I do artigo 3º meio ambiente como: “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”, claramente superando a visão utilitarista do meio ambiente que predominava na fase anterior. Conforme Suely de Araújo, a Lei adotou a ideia do desenvolvimento sustentável e, de forma ainda mais inovadora, o princípio do poluidor pagador (ARAÚJO, 2008, p. 237). Além disso, previu a responsabilidade civil objetiva por dano ambiental e a legitimidade do Ministério Público para a tutela do meio ambiente. O SISNAMA era considerado confuso e, por muito tempo, não efetivado. A esse respeito, Ana Maria Marchesan declarou que a Lei Complementar nº 40 de 2011 “organizou essa grande bagunça que era o Sistema Nacional de Meio Ambiente discriminando bem as competências da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Embora ainda haja várias ações envolvendo problemas nessa distribuição de competências em matéria ambiental, a lei, em alguma medida, deu uma organizada”.

Após, já no período da redemocratização, foi editada a Lei nº 7.347 de 24 de julho de 1985, Lei da Ação Civil Pública, predominantemente processual. Segundo Marchesan, Steigleder e Cappelli, a Lei é:

ainda o principal instrumento processual civil utilizado para a tutela ambiental no Brasil e, dentre cujos méritos, podem-se destacar a ampliação  da legitimidade ativa para alcançar as associações de proteção do meio ambiente, a possibilidade de tutela preventiva através de liminares e cautelares , a coisa julgada erga omnes, o amplo objeto, consistente na condenação do réu em obrigações de fazer, não-fazer ou indenizar (MARCHESAN, STEIGLEDER, CAPPELLI, 2013, p. 29).

Na sequência veio a Constituição de 1988 que conferiu, pela primeira vez, capítulo próprio ao meio ambiente. Diz o artigo 225:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

O meio ambiente é considerado bem de uso comum do povo e como bem jurídico autônomo, ou seja, diversos dos bens que o compõe. Há um enorme avanço em relação à definição que consta na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente. A Constituição estabeleceu a obrigação do poder público e da comunidade de preservá-lo. O bem tutelado é o meio ambiente ecologicamente equilibrado. Também foram constitucionalizadas a necessidade de estudo de impacto ambiental para a instalação de obra ou atividade com potencial de degradação do meio ambiente e a responsabilização de pessoas físicas e jurídicas nas esferas civil, penal e administrativa de forma independente.

Os entrevistados foram quase unânimes em atribuir a esse tripé legislativo – Lei de 1981, Lei da Ação Civil Pública e Constituição de 1988 – a mudança na atuação do Ministério Público na tutela dos direitos difusos e coletivos em geral e do meio ambiente em particular. Silvia Cappelli explica:

Antes de 1988, o Ministério Público exercia a autoria da ação cível e, claro, também no processo penal, sendo dominus litis. Nenhum problema com relação a isso. Mas houve uma transformação muito importante do Ministério Público, na esfera cível. Até a década de oitenta, o Ministério Público era custos legis, ele era o fiscal da lei no processo civil e só atuava nas ações de interesse público, seja pela natureza da lide, seja pela qualidade da parte. Antes da década de 1980, um pouco antes de 1988, o Ministério Público era só interveniente no processo civil. Falava depois das partes e falava só quando a Fazenda Pública estivesse presente, ou um menor, ou em questões de direito de família. Era muito restrita a atuação do Ministério Público no processo civil e era uma atuação, digamos assim, subsidiária no processo. Porque ele falava para verificar a legalidade do procedimento e se havia alguma parte que era considerada hipossuficiente, ele estava ali para zelar pelos seus interesses, como no caso da curatela, da tutela do menor. Essa foi uma grande transformação que aconteceu na década de 1980, um pouco antes da Constituição Federal. Ela começa nessa lei da política nacional do meio ambiente e continua com a lei da ação civil pública. Aí, Ministério Público se transforma radicalmente e passa a ser protagonista de uma ação coletiva que é a ação civil pública. Então ele muda muito o seu perfil, o seu dia a dia; porque antes, no processo civil, ele recebia um processo para dar um parecer. E aí ele se transforma enormemente e passa a ser o autor, em nome de uma coletividade.

Na fase contemporânea, ou seja, pós-Constituição, houve uma grande evolução com o Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078 de 1990, que criou o compromisso de ajustamento de conduta com eficácia de título executivo extrajudicial, hoje denominado de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). O TAC permite a solução de conflitos antes de sua judicialização, desonerando o Poder Judiciário e promovendo a efetividade na resolução das lides. Silvia Cappelli explica que o TAC é muito importante na área ambiental, pois uma ação civil pública ambiental é complexa e demorada. O TAC é uma proposta de acordo sobre as condições acessórias do cumprimento de uma obrigação, questões de tempo modo e lugar. “No momento em que há consenso por parte do investigado, melhor resolver em acordo do que em demanda. Consegue-se um resultado prático mais célere”.

Outra lei importante foi a Lei nº 9.605 de 1998, Lei dos Crimes e Infrações Administrativas Ambientais. Essa lei sistematizou sanções administrativas e tipificou crimes ambientais que se encontravam dispersos em outros diplomas legais. Uma novidade importante é a previsão de responsabilidade penal da pessoa jurídica, único caso na legislação infraconstitucional (MARCHESAN, STEIGLEDER, CAPPELLI, 2013, p. 30-31). Daniel Martini ofereceu a primeira denúncia por crime ambiental contra pessoa jurídica no Estado do RS.

Infelizmente não houve somente avanços legislativos. A lei nº 12.651 de 2012, Código Florestal, é alvo de críticas. Ana Maria Marchesan declarou:

Costumo brincar que é o novo código antiflorestal, porque, se ele fosse florestal, ele se preocuparia com a preservação das florestas. E, na verdade, ele abre uma série de portinhas para destruir as florestas. E com o advento desse instrumento, hoje nós já estamos convivendo com as queimadas de novo, infelizmente.

Cientistas e ambientalistas criticam o Código. Ele diminui a área de floresta desmatada ilegalmente que deveria ser restaurada no país em 58%: de 50 milhões de hectares (500 mil km²) para 21 milhões de hectares (210 mil km²). Além disso, a lei permite o desmatamento legal de mais 88 milhões de hectares [3]. Daniel Martini aponta o paradoxo de o Código Florestal de 1965, do período da ditadura militar, ser mais protetivo do que o de 2012.

O maior desafio da fase contemporânea é a incorporação de um paradigma antropocentrista mitigado no lugar do antropocentrismo clássico, segundo o qual os recursos ambientais estão disponíveis em função dos seres humanos. Segundo Orci Teixeira Bretanha é necessária “uma nova ética relacional homem-meio ambiente, que priorize a harmonização entre os sistemas econômicos e a defesa ambiental, e atenda às necessidades das presentes e futuras gerações” (TEIXEIRA, 2012, p. 7).

As inovações legislativas conferiram novas atribuições ao Ministério Público que, em 1988, não se encontrava ainda preparado para desempenhá-las. Assim, a história da atuação do Ministério Público na área ambiental também é a história das mudanças institucionais feitas para permitir essa atuação. Segundo Cappelli “os Ministérios Públicos, especialmente os dos Estados, fizeram um investimento muito considerável para fazer frente a essa nova demanda”.

As Coordenadorias de Promotorias estavam previstas na redação original da Lei nº 7.669 de 17 de junho de 1982, Lei Orgânica do Ministério Público. Todavia, na lei estavam somente previstas coordenadorias de promotorias cíveis e criminais. O Provimento 09/87, de 23 de dezembro de 1987 implantou as Coordenadorias das Promotorias de Defesa Comunitária com atribuições relacionadas ao meio ambiente, ao consumidor e ao patrimônio cultural. O artigo 15 do provimento também estabelecia função de defesa comunitária nas comarcas do interior ao 2º promotor de Justiça, ao curador cível, onde houvesse, ou ao segundo curador cível onde houvesse mais de um curador. O primeiro Coordenador das Promotorias de Defesa Comunitária foi Ariovaldo Perrone.

Em outubro de 1991 pelo Ato nº 01/91- PGJ foi criado o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Defesa Comunitária juntamente com outros Centros de Apoio. Orci Paulino Bretanha Teixeira, o primeiro Coordenador do CAO de Defesa Comunitária, recorda em seu depoimento que foi o Procurador-Geral de Justiça Francisco Luçardo que implantou os centros de apoio, tendo como modelo o Ministério Público do Estado de São Paulo:

Fui o primeiro coordenador do Centro de Apoio das Promotorias de Defesa Comunitária com atribuições da defesa do meio ambiente, do meio ambiente cultural e do consumidor. Com outros colegas, implementamos os Centros de Apoio, atuando e divulgando as novas atribuições outorgadas pela Constituição Federal de 1988. Os Centros de Apoio integraram o Ministério Público com outras instituições, especialmente com a Brigada Militar que sempre apoiou o Ministério Público na defesa do meio ambiente.

No ano 2000, o Provimento nº 07/2000, separou a área do consumidor da área ambiental, criando um centro de apoio para cada uma delas. Daniel Martini, Coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente - CAOMA - explica a sua função: “é, na estrutura administrativa do Ministério Público, o órgão que tem por atribuição pensar a política ambiental na Instituição e também ser um órgão, como o nome diz, de apoio aos colegas promotores de justiça. (...) Demanda uma constante atualização e permanente interlocução com os órgãos estaduais e nacionais, sejam os órgãos legislativos, sejam os administrativos”. A primeira coordenadora do CAOMA foi Silvia Cappelli.

Sílvia Cappelli, no CAOMA, iniciou um trabalho de realização de oficinas em Porto Alegre e no interior, já a partir do ano 2000. Cappelli explica como eram organizadas essas oficinas:

(...) o Centro de Apoio buscava um parceiro público para o aprofundamento de um assunto de atuação comum na gestão ambiental, ou seja, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e o Ministério Público, ou também, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Porto Alegre. O Centro de Apoio organizava todo o material de legislação, doutrina e jurisprudência existente a respeito daquele tema e convidava também alguns promotores mais experientes na área da temática a ser debatida. Por outro lado, o órgão de gestão também convidava os seus funcionários. Depois nós contatávamos com a Associação do Ministério Público, com o procurador-geral e levávamos em conta a divisão espacial da Associação do Ministério Público para definir as regiões em que nós íamos aplicar essa oficina de trabalho.

A promotora acentua que a cada oficina de trabalho era perceptível, no Centro de Apoio, o ingresso de mais ações, havia mais Termos de Ajustamento, ou seja, essas oficinas estavam atingindo a sua finalidade.

Vários dos depoentes recordaram a importância das oficinas de trabalho. Paulo da Silva Cirne recorda: “Para mim foi muito importante ter aquele contato com outros colegas, receber aquelas informações, o que de certa forma facilitou o meu trabalho. A partir desse momento, percebi a necessidade do entrosamento entre as instituições que atuam na área ambiental”.

Outra iniciativa importante do ano de 2000 foi a criação do Conselho de Defesa do Meio Ambiente – CONMAN , no âmbito do Ministério Público [4]. Formado pelo coordenador do CAO Ambiental, pelos promotores atuantes nas Coordenadorias das Promotorias de Defesa Comunitária na área ambiental, por promotores de defesa comunitária de cidades importantes do Estado, etc., o CONMAN tem por objetivos elaborar enunciados visando à harmonização da atuação, à realização reuniões de promotores que atuam na área, por regiões, e outros estabelecidos no seu regimento interno. A respeito do CONMAN, Silvia Cappelli recorda:

Nós nos reuníamos uma vez por mês para debater temas comuns, importantes de interesse, ou de dúvida, no Ministério Público. Por exemplo, iniciava-se uma nova atividade econômica, ou havia algum problema jurídico que exigia aprofundamento, um estudo, um debate e, principalmente, se fazia necessária a elaboração de um enunciado sobre aquela matéria, nós deliberávamos dentro desse conselho, que se reunia mensalmente. (...). Esses enunciados nós enviávamos para a Corregedoria. Se a Corregedoria aprovasse, eles seriam informados, sugeridos, como orientação para todo o Estado, senão, eles ficavam apenas no âmbito do Conselho.

Até hoje foram realizadas 62 reuniões [5] com discussão e elaboração de enunciados sobre os mais diversos temas.

Atuar na área ambiental implicava em entrar em contato com uma enorme quantidade de temas não jurídicos. Hoje o Ministério Público conta com o Gabinete de Assessoramento Técnico, onde profissionais das mais diversas áreas realizam vistorias, elaboram pareceres, prestam consultorias, para a instrução de inquéritos cíveis e ajuizamento de ações civis públicas. Mas nem sempre foi assim. Claudio Bonatto explica como era o assessoramento:

(...) fizemos convênios com o CREA, na questão de engenharia; com o SIMERS, que é o sindicato dos médicos, na área da saúde; com a CIENTEC, na área da segurança alimentar, e tantos outros, para que os seus técnicos fizessem as vistorias e os laudos para nós, e, depois, quando ingressávamos com as ações, pedíamos aos juízes que incluíssem, na condenação dos réus, o pagamento dos honorários dos técnicos que nos assessoravam. Era assim que funcionava.

Pesquisando nos primeiros inquéritos civis e ACP existentes no Arquivo do Ministério Público e no Arquivo Judicial é possível encontrar esse tipo de solução para a falta de técnicos nos quadros do MP. Por exemplo, em inquérito instaurado para apurar a poluição atmosférica que emanava da chaminé do hospital Cristo Redentor, a promotora Silvia Cappelli solicitou a perícia de um engenheiro nos termos de convênio feito com a Cooperativa dos Engenheiros do Rio Grande do Sul em 8 de junho de 1993. Foi designado o engenheiro mecânico Ernesto Bernardi. Com a possibilidade de realização de termo de ajustamento de conduta, denominado na época de “termo de compromisso de adequação de atividade”, a promotora propôs ao próprio hospital que pagasse os honorários do engenheiro. A proposta foi aceita e em dezembro de 1993, o engenheiro Bernardi recebeu o valor de CR$ 56.652,00 (cinquenta e seis mil seiscentos e cinquenta e dois cruzeiros) [6]. Há muitos exemplos desse tipo de colaboração.

Foi somente no ano 2000 que foi criado o Serviço de Assessoramento pelo Provimento nº 04/2000 ainda em termos muito genéricos. Em 20 de novembro de 2003, pelo Provimento n° 66/2003, o Serviço de Assessoramento passa a ser denominado de Divisão de Assessoramento Técnico. E em 2015, recebe o nome de Gabinete de Assessoramente Técnico e passa a contar com um regimento interno.

Em fevereiro de 2008 foi dado mais um passo para melhorar a estrutura institucional para o trabalho na área ambiental: a criação da Rede Ambiental. Conforme o artigo 2º do Provimento nº 52/2010 [7], a Rede Ambiental tem por finalidade promover a articulação e a atuação das promotorias de justiça com atribuição na área ambiental, propiciando a atuação integrada, a troca de informações, o planejamento e a avaliação de ações. Ela é integrada pelo CAO Ambiental e pelas promotorias de justiça com atribuição ambiental sediadas em cada uma das bacias hidrográficas do Estado. Alexandre Saltz participou da criação da Rede Ambiental:

Esse foi um projeto pelo qual tenho um carinho muito grande, considero como se fosse um filho porque participei junto com o pessoal do GAGI desde a concepção. Depois implantamos 19 redes ambientais. A ideia era que cada bacia hidrográfica tivesse uma, mas havia bacias que se sobrepunham, não tinha sentido em criar 3 ou 4 redes quando o promotor que iria tratar daquilo era o mesmo. Então nós criamos um modelo, dividimos o estado e criamos 19 redes ambientais, cada uma com um promotor coordenador e um coordenador substituto. Cada rede deveria ter, no mínimo, dois inquéritos regionais, tratando de questões que impactavam na região como um todo. Esse diálogo era feito com a sociedade.

Ximena Ferreira explica que “a ideia de redes ambientais surgiu para enfrentar o problema de uma forma regionalizada, pois o meio ambiente não respeita as fronteiras políticas”. Os problemas ambientais de uma comarca são os mesmos da comarca contígua, de forma que o seu enfrentamento precisa ocorrer de forma regionalizada. Segundo Daniel Martini, Coordenador do CAOMA, a Rede Ambiental foi um dos principais avanços na organização da instituição na defesa do meio ambiente. Martini explica que a rede evoluiu para as Promotorias Regionais Ambientais, projeto que ainda está em fase de implementação.  De acordo com o §2º do artigo 1º do Provimento nº 45/2016, que disciplina a atuação das Promotorias Regionais do Meio Ambiente, o seu âmbito territorial é a bacia hidrográfica da região. Martini informou que até agosto de 2016 havia duas promotorias regionais, a do Rio dos Sinos e do Gravataí. No segundo semestre do ano foram implantadas mais três: do Caí, do Taquari/Antas e do Ijuí.

Os primeiros inquéritos civis e ações civis públicas ambientais foram instaurados e ajuizadas no final da década de 1980 e início da década de 1990. Em pesquisa no Arquivo do Ministério Público e no Arquivo Judicial Centralizado foi localizada uma ação com data de 14 de setembro de 1990, a mais antiga de que se tem registro [8]. A ação, da comarca de Carazinho, foi ajuizada contra município de Carazinho, contra o Clube Carazinho de Caça e Pesca e contra a Associação dos Funcionários da Caixa Econômica Estadual do Rio Grande do Sul pela então promotora Marcia Leal Zanotto Farina. A base era um inquérito civil instaurado em 23 de novembro de 1988.  A ação relata que o município de Carazinho celebrou contrato de comodato em área do Parque Municipal da cidade cedendo espaço ao Clube de Tiro e à Associação dos Funcionários da Caixa. Também houve arrendamento por contrato verbal de área do parque para exploração agrícola. Essas mudanças foram feitas sem nenhum estudo de impacto e estariam comprometendo a vegetação do local, bem como uma das nascentes do rio Várzea localizada dentro das terras utilizadas pelo clube. Também se chamava a atenção para a falta de segurança, já que o Clube de Tiro não havia cercado sua circunscrição. A promotora solicitava que fosse deferida liminarmente a determinação para que o Clube de Tiro e a Associação dos Funcionários cessassem as suas atividades e que um torneio de tiro que estava programado fosse proibido, que os contratos de comodato fossem declarados nulos, que as áreas fossem devolvidas ao município e que o município fosse condenado a repará-las. A liminar foi deferida no sentido da suspensão do torneio de tiro, mas não para a cessação completa das atividades do Clube. Com respeito à ilegalidade dos contratos, o juiz de primeiro grau os considerou legais, mas o Tribunal em agravo de instrumento do Ministério Público afastou a decisão. Foi realizada prova pericial e inspeção judicial. O Ministério Público apresentou um amplo e minucioso laudo mostrando as espécies animais e vegetais existentes na área e de que forma as atividades do Clube as colocavam em risco. Em 1º de março de 1999, a sentença judicial julgou a ação civil pública improcedente quanto à ilegalidade dos contratos: “a ação da Prefeitura Municipal ao ceder em comodato ao réu parcela do bem público descrita na inicial não caracteriza desvio de finalidade, pois essa destinação especial estava previamente autorizada pelo Legislativo”. Quanto aos danos ao meio ambiente, a juíza se fixou em todos os trechos que demonstravam que atividade do Clube de Tiro era distante da área de circulação de pessoas:

Desta forma, considerando a distância entre a área de tiro e a mata apontada como refúgio da fauna de 1500 metros, o sentido contrário à mata dos disparos, a perda de intensidade dos estampidos há 800 metros e, ainda, a perfeita visibilidade do local para o caso de aparecimento de pessoas ou animais, mister concluir não esteja a atividade do réu acusando danos ao meio ambiente.

A liminar concedida no processo cautelar foi revogada.

Quanto à Associação de Funcionários da Caixa Estadual, ela foi excluída do polo passivo da ação por ter realizado acordo com a prefeitura e devolvido a área que tinha em comodato.

Observa-se, ao ler a sentença, uma perspectiva um tanto reducionista por parte do magistrado, que estava analisando as atividades danosas de um ponto de vista bastante pontual. Isso foi corroborado nas entrevistas, no sentido de que o Ministério Público se aparelhou muito mais cedo para a tutela ambiental do que a magistratura. Mas isso mudou. Em 2004, Ana Maria Marchesan declarou que o Poder Judiciário não havia ainda despertado para a tutela dos interesses difusos (SOUTO et alli, p. 59). Doze anos depois, a promotora comenta que já há muitos juízes interessados e estudiosos do tema, ainda que mais na magistratura federal que na estadual. Annelise Steigleder também vê progresso:

Na verdade, houve uma sensibilização do Poder Judiciário. De modo geral, dá para dizer que eles também estão se preparando, estão se qualificando. Houve uma especialização das Varas Judiciais, e isso faz com que os juízes ali classificados acabem começando a lidar mais com as questões ambientais. Então, eu penso que melhorou muito desde quando eu entrei.

No curso das entrevistas, alguns temas relativos à atuação do Ministério Público gaúcho na área ambiental se destacaram: a destinação dos resíduos sólidos, a proteção do bioma pampa, o problema dos alagamentos e inundações, a defesa do patrimônio cultural, o uso desenfreado de agrotóxicos, a mineração de areia no Lago Guaíba, a falta de saneamento urbano e a contaminação hídrica.

Apesar da importância do tema, foi somente em 2010 que o Congresso Nacional editou a Lei nº 12. 305 que institui a política nacional de resíduos sólidos, uma lei geral que apresenta uma série de conceitos normativos relevantes como destinação e disposição final ambientalmente adequada, gerenciamento e gestão integrada, logística reversa, etc. De acordo com a lei, resíduos sólidos são material, substância, objeto ou bem descartado resultantes de atividades humanas em sociedade cuja destinação final se procede em estado sólido ou semissólido (incluem-se também gases contidos em recipientes e líquidos que não possam ser lançados em redes de esgotos ou cursos de água). A administração dos resíduos sólidos está diretamente relacionada à urbanização e ao consumismo. Relatório da ONU – Habitat, Programa da ONU para Assentamentos Humanos, publicado em 2016 estima que em 2030 dois terços da população mundial viverá em áreas urbanas [9]. O estilo de vida contemporâneo baseado no consumismo e na ampla utilização de materiais descartáveis aumentou de forma intensa a produção de resíduos sólidos. E “o setor de resíduos contribui com pelo menos 5% das emissões de gases de efeito global, sendo a emissão de gás metano, que é 21 vezes mais impactante para o efeito estufa que o dióxido de carbono, gerado pela deposição dos resíduos sólidos em aterros sanitários o principal responsável” (SEIDEL, 2010).

Paulo da Silva Cirne, Coordenador da Rede Ambiental do Alto Jacuí, alerta para a denominada “obsolescência programada”, ou seja, produtos com baixa durabilidade e que geram grande quantidade de resíduos, bem como as diversas embalagens de plástico, isopor, etc. A maior parte da população descarta os resíduos em terrenos baldios, nas margens das rodovias, em lugares ermos. O promotor considera “que, na questão do conflito entre as necessidades humanas e o meio ambiente, o ponto mais grave que enfrentamos é o lixo”. Cirne considera a destinação adequada dos resíduos sólidos o maior desafio a ser enfrentado pelo Estado na área ambiental.

Já há soluções obtidas no âmbito do Ministério Público. Ricardo Schinestsck Rodrigues, Promotor de Justiça Regional Ambiental da Bacia Hidrográfica dos Sinos, relata que foi instaurado um inquérito civil para analisar o que cada um dos 32 municípios da bacia estava fazendo com seus resíduos. Foi escolhido o município de Nova Hartz para um Projeto Piloto de Termo de Cooperação Técnica. O objetivo era a construção de soluções regionais já que se identificou que cada município adotava práticas próprias sem interação com os demais.

Fizemos uma pesquisa sobre o óleo de cozinha e descobrimos que em Nova Hartz havia uma indústria que produzia solado de sapato para duas empresas calçadistas, utilizando como matéria-prima óleo de cozinha usado. Inclusive ela estava tendo dificuldade para conseguir o óleo e, por vezes, precisava buscar fora do município. Chamamos o empresário, chamamos a Secretária Municipal do Meio Ambiente de Nova Hartz, junto com o prefeito, e firmamos um termo de cooperação. Vemos isso como uma solução regional, já que estamos numa região onde a indústria calçadista tem predominância. Vamos incentivar outros fabricantes de solado a utilizarem o óleo de cozinha como matéria-prima. A grande vantagem disso é que não ficam resíduos. Um litro de óleo de cozinha contamina quinze mil litros de água. Já colocar óleo de cozinha nos solados de sapato gera resíduo zero.

Foram instalados pontos de coleta de óleo de cozinha em vários locais da cidade e a população aderiu. O termo de cooperação foi um grande sucesso e modelo para ações semelhantes.

Convém lembrar que a destinação dos resíduos sólidos também tem uma dimensão social. Annelise Steigleder comenta o trabalho que realiza há três anos relacionado a resíduos sólidos, logística reversa [10] e inclusão social dos catadores. Steigleder ressalta que é necessário um trabalho em rede com o Ministério Público do Trabalho e com a Defensoria Pública para que os catadores sejam incluídos não somente do ponto de vista formal, mas que possam obter regularização jurídica. Isso inclui pressionar a Prefeitura para que sejam firmados os termos de permissão de uso, para que os convênios firmados entre o DMLU e cooperativas incluam condicionantes de gestão ambiental, para evitar que nessas cooperativas aconteçam danos ambientais. E também trabalhar junto à Câmara de Vereadores para que produza legislação adequada. Para a promotora “É muito complicado, mas é bem interessante. Conseguimos tirar de uma situação de invisibilidade uma população muito vulnerável”.

É preciso também dar o exemplo. A primeira iniciativa interna no sentido de gerenciamento de resíduos sólidos ocorreu em 2002 com a instituição da Política de Manejo dos Resíduos Sólidos produzidos no MPRS e a Comissão Permanente de Gerenciamento de Resíduos Sólidos. A coleta seletiva iniciou em 2003 pelo prédio da Andrade Neves e foi sendo estendida aos outros prédios. Em 2008, a coleta seletiva foi instaurada em diversas promotorias. E em 2010 foi instalada a Comissão Institucional de Gestão Ambiental do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul [11]. Alexandre Saltz conta como no período em que foi Coordenador do CAOMA deu seguimento a esse programa iniciado por Silvia Cappelli. Em 2016, 31.086 Kg de papel foram doados à Associação de Catadores de Materiais recicláveis [12].

Outro tema relevante que aparece nos depoimentos é a proteção do bioma pampa. O bioma pampa ocupa uma área de 176,5 mil Km² e é constituído principalmente por vegetação campestre – gramíneas, herbáceas e algumas árvores. Ocupa 63% do território do Rio Grande do Sul, existindo também na Argentina e no Uruguai. Annelise Steigleder explica o problema relativo ao bioma pampa que está sendo manejado pela Promotoria do Meio Ambiente de Porto Alegre. O Código Florestal de 2012 não incluiu uma proteção jurídica para campos naturais e nativos. Assim, o proprietário ou possuidor rural tem dificuldades de caracterizar sua propriedade no Cadastro Ambiental Rural - CAR [13]. O Decreto nº 52.431/15 do governo estadual, que regulamenta o CAR no Rio Grande do Sul, distingue entre áreas rurais consolidadas por supressão de vegetação nativa por atividade pecuária e áreas remanescentes de vegetação nativa. A consequência da distinção é a dispensa da reserva legal para os imóveis rurais de até quatro módulos fiscais localizados no bioma pampa. Já que o artigo 67 do novo Código Florestal prescreve que, para as áreas rurais consolidadas, a reserva legal será constituída com os remanescentes de vegetação nativa em 22 de julho de 2008. A Promotoria do Meio Ambiente ingressou com uma ação civil pública contestando essa interpretação e considerando o artigo 67 do Código Florestal inconstitucional. Para o MP, e para diversos pesquisadores na área, o pastoreio não causa supressão de vegetação nativa. A ação, que ainda está em andamento, é no sentido de que se exija a reserva legal no campo, o que significaria preservar 20% da cobertura florestal. Para Annelise Steigleder o decreto teve motivação econômica e política com o objetivo de:

(...) converter campo nativo em soja, pois hoje o plantio de soja está dando muito mais dinheiro do que a pecuária. A paisagem do bioma do pampa fica alterada completamente. Consequentemente, todo o conhecimento tradicional associado à vida do homem do bioma, o gaúcho, fica atingido, porque vai perder seu modo de vida. Enfim, há muitos impactos em vários níveis.

Com respeito a esse tipo de iniciativa do governo do Estado, Ana Maria Marchesan acentua que, no momento atual, conquistas da população em termos de legislação ambiental consolidada têm sido atacadas por legislações que envolvem retrocessos na área ambiental. Os promotores que atuam na área ambiental têm, além das tarefas rotineiras, que acompanhar essas iniciativas nas esferas municipal, estadual e federal para impedir recuos.  Silvia Cappelli considera que a ameaça do Código Florestal ao bioma pampa é um dos maiores problemas do Estado na área ambiental no momento.

Os alagamentos e inundações são um problema grave em todo o Estado. Para alguns gera incômodo em períodos de chuvas intensas. Para os que habitam em áreas de risco, população pobre e desassistida, representam risco de vida. Nas promotorias regionais, as mais atingidas pelos alagamentos são a do Sinos e a de Gravataí. Ricardo Schinestsck Rodrigues, Promotor de Justiça Regional Ambiental da Bacia Hidrográfica do Sinos, conta que quando assumiu a regional a população havia elegido as inundações como o principal problema. Havia um plano de atuação na Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos que estabelecia que uma das ações deveria ser o zoneamento das áreas sujeitas a inundações. Elaborou-se, então, o mapeamento dos trechos inferior, médio e superior da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos, sujeitos a alagamentos. Esse mapeamento foi apresentado em outubro de 2015. Houve, segundo o promotor, resistência das prefeituras, que julgavam que perderiam autonomia sobre seus territórios, e do setor privado, na maioria das áreas existentes entre Canoas e Esteio. Principalmente entre a BR 448 e a BR 116 – empresas imobiliárias que adquiriram grandes áreas para construir conjuntos habitacionais e zonas industriais ou mistas. Houve diversas reuniões e audiências públicas e a promotoria emitiu recomendações aos municípios e aos órgãos ambientais estaduais – a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e a FEPAM – para que suspendessem toda e qualquer nova licença que pudesse interferir nessa deliberação do COMITESINOS. Ao mesmo tempo, a METROPLAN começou um estudo para planejamento da gestão da planície de inundação. Assim, a recomendação do MP vinculou a suspensão dos atos administrativos que pudessem interferir na planície de inundação à validação desse estudo.

Anelise Stifelman explica que na década de 1960, o Departamento Nacional de Obras de Saneamento – DNOS - drenou grandes extensões de área no Banhado Grande. “A Bacia Hidrográfica do Gravataí é um grande banhado, sendo que tal ecossistema é um regulador natural que produz um “efeito esponja” nos períodos de alto índice pluviométrico e um “efeito de reservatório” nos períodos de estiagem”. Foi aberto um canal que retificou o rio ao longo de 20 quilômetros. Eduardo Coral Viegas comenta que isso está trazendo grandes impactos para a Grande Porto Alegre, já que não há retenção de água a montante e a água do Gravataí está chegando mais rápido a Porto Alegre. Há um projeto do Comitê de Bacia para intervenção física no rio e sua renaturalização no qual a promotoria regional está engajada.

Ximena Cardozo Ferreira, Promotora de Justiça de Taquara, enfrentou, em sua comarca, o asfaltamento indiscriminado que produz impermeabilização do solo e potencializa as inundações. A promotora percebeu que o asfaltamento era feito de forma aleatória, sem nenhum estudo. Foi feito um estudo dentro do projeto VerdeSinos – integrado por diversas entidades e coordenado pelo Comitê da Bacia do Rio dos Sinos – para delimitar a planície de inundação do rio.

(...) a cheia do rio é um fenômeno natural, ela vai acontecer, mais dia, menos dia. O problema surge quando colocamos pessoas a morar onde sabemos que haverá inundações. Sem falar de outras ações humanas e outros problemas que agravam isso. Ou seja, nós estamos vivendo uma era de aquecimento global, de mudanças climáticas que já fazem com que os fenômenos sejam agravados e, além disso, através de ações antrópicas, estamos impermeabilizando o solo, estamos acabando com os banhados que retêm água, estamos desmatando as florestas, que também funcionam para impedir as inundações.

Ximena Ferreira transformou o tema, inundações urbanas, em objeto de sua dissertação de mestrado defendida na Espanha em julho de 2016. Há sistemas de drenagem urbana sustentável, que estão sendo adotados na Europa, de reprodução artificial de ambientes naturais que foram extintos, como os banhados. Os telhados verdes e pisos permeáveis já são utilizados aqui, mas seu uso pode ser ampliado. Mas, segundo a promotora, há muita resistência das prefeituras que trabalham com base no imediatismo e sem nenhum planejamento.

Outro tema que se destacou nas entrevistas foi à proteção ao patrimônio cultural. Ana Maria Marchesan, autora da obra “A Tutela do Patrimônio Cultural sob o enfoque do Direito Ambiental” conta como o Ministério Público gaúcho se aparelhou para trabalhar com a área:

E aí os méritos são muito da Dra. Sílvia Cappelli como coordenadora do Centro de Apoio do Meio Ambiente. Ela organizou oficinas de trabalho muito legais, temáticas, sobre vários assuntos ambientais, dentre eles o patrimônio cultural. Essas oficinas eram muito bem preparadas antes de acontecerem. Nós, eu, a Annelise Steigleder e outros colegas daqui participávamos junto com colegas do interior, junto com técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico (...). Fora isso a estrutura do Centro de Apoio elaborava pastas fantásticas, que eram como cartilhas do patrimônio cultural, que eram o material a ser fornecido para os promotores: peças, artigos de doutrina, um material muito bom, até hoje uso esse material.

A promotora considera que hoje o Ministério Público do RS está muito mais habilitado a lidar com o patrimônio cultural, mas julga que não houve avanço na sua proteção desde que começou a trabalhar com a matéria: “A proteção em si eu diria que padece dos problemas de recursos econômicos. Quando o Estado se depaupera, essa área se fragiliza também”. Annelise Steigleder aponta que o Estado faz o mínimo e o particular não tem nenhum incentivo para proteger o seu patrimônio. Isso faz com que muitos dos casos que chegam à promotoria sejam judicializados. “Acabamos invariavelmente ingressando com ações contra o proprietário, que não tem dinheiro para fazer a obra, e contra o município, que também se recusa a fazer as obras emergenciais”. Alexandre Saltz aponta a ausência de política pública para gerir o patrimônio cultural. O promotor considera que a desapropriação, que é um instrumento urbanístico de proteção ao patrimônio, poderia ser utilizada caso houvesse uma política nesse sentido. Ximena Cardozo Ferreira também destaca a ausência de política pública e chama a atenção para a carência de legislação municipal. Conta que a promotoria de Taquara já tentou por duas vezes implantar legislação sobre tombamento e nas duas vezes os projetos de lei encaminhados pelo Poder Executivo foram derrubados pelo Legislativo. A resistência é dos proprietários dos prédios e das imobiliárias. Mesmo assim, a promotoria firmou um compromisso de ajustamento de conduta com o município para criar um inventário dos bens culturais de Taquara: “após anos de trabalho, conseguimos que a FACCAT – Faculdades de Taquara – fizesse, arrolando os principais bens merecedores de proteção”.

Com respeito a casos de sucesso, Ana Maria Marchesan considera que há mais chance quando envolvem ações que precedem qualquer intervenção, uma vez que depois que os danos se consumam é muito difícil revertê-los e na seara do patrimônio cultural o dano muitas vezes implica na perda do bem. Também julga que há mais possibilidade de um bom desfecho quando há participação da comunidade.

Um caso relatado por Annelise Steigleder exemplifica um caso no qual o engajamento da comunidade pode gerar um desfecho favorável. O cemitério São José foi, em parte, destruído, pois as lápides não eram inventariadas, nem tombadas.

E aí, graças ao trabalho de doutorado da professora Luísa Nitschik Carvalho, de Pelotas, se conseguiu caracterizar o valor cultural dos túmulos. E esse caso é especialmente interessante porque, na verdade, ele não está totalmente concluído, mas, do limão, se está fazendo uma limonada. Depois de tantas reuniões, tantos diálogos com a CORTEL - a empresa gestora do cemitério -, acabaram contratando a professora que, no âmbito da tese dela, fez um inventário muito bom com relação às obras de arte funerária. Ela levantou a história das famílias. (...) A professora acabou sendo contratada para fazer um memorial lá. Ainda está em andamento. Ela está fazendo o projeto do memorial, vai fazer roteiros visitação, material didático.

Já outro caso, lembrado por Ana Maria Marchesan, recentemente teve uma solução negativa, apesar do amplo envolvimento da comunidade: as casas de Luciana de Abreu. Em 2002 a construtora Goldsztein obteve licença para demolir seis casarões da década de 1930 localizados na Rua Luciana de Abreu para construir um prédio de seis andares. No ano seguinte, o Ministério Público ajuizou uma ação civil pública para impedir a demolição que ficou suspensa. A ação estava no STJ que, no final de 2016, decidiu pela demolição das casas. A construtora demoliu as casas em 23 de dezembro em uma ação que surpreendeu os moradores pela rapidez. Apesar disso, Ana Marchesan considera o caso emblemático: “Ali, para mim, foi uma lição importante no sentido de que o Ministério Público deixasse de trabalhar só para a comunidade e passasse a trabalhar com a comunidade. Foi um exemplo claro disso”. Infelizmente, os interesses econômicos e de especulação imobiliária prevaleceram.

Um dos grandes problemas enfrentado pelo MP na defesa do meio ambiente e na proteção da saúde de trabalhadores e consumidores é o uso imoderado e inadequado de agrotóxicos em nosso país e no Rio Grande do Sul. Essa questão foi mencionada nas entrevistas.

Em seu depoimento, Paulo da Silva Cirne assevera:

Há sete anos somos campeões mundiais. Possivelmente atingiremos em 2016 o oitavo título consecutivo do país que mais utiliza agrotóxicos no mundo. (…) O consumo de agrotóxicos no planeta no ano de 2014, teve um aumento de 93%, mas no Brasil o seu crescimento foi de 190%. (…) Não há razões para que esse consumo tenha se elevado tanto (…) novas 'fronteiras agrícolas' abertas no país nos últimos anos não justificam tal crescimento.

Daniel Martini, ainda que reconheça que não se pode pensar “numa agricultura totalmente orgânica”, também denuncia essa realidade: “O Brasil é o maior consumidor do mundo e o RS consome acima da média nacional. No Brasil, se traçarmos uma média (…) teremos 5 litros de agrotóxico por habitante, no ano. No RS, a média sobe para 8 litros”. Martini relata que no Brasil são liberados agrotóxicos que são proibidos em outras partes do mundo, como o paraquat. E conclui: “o agrotóxico pode ser considerado o mal do século (…) o MP deve dar atenção, não só na defesa do meio ambiente, mas também na defesa da saúde das pessoas. (…) Estamos nos transformando (…) em seres doentes, uma geração potencialmente causadora do próprio enfraquecimento da espécie”.

Certamente o uso em alta escala de agrotóxicos em nosso Estado tem relação com o fato do RS ter as mais elevadas taxas de mortalidade por câncer no Brasil, com 327 mortes para cada 100 mil habitantes, em 2013. E a previsão é de 1040 novos casos de câncer por 100 mil habitantes, em 2016. A pesquisadora Márcia Sarpa Campos Mello ressalta que o agrotóxico mais usado no Brasil, o glifosato, é proibido em toda Europa e “está relacionado aos cânceres de mama e próstata, além de linfoma e outras mutações genéticas. (…) o paraquat (gramoxone e outros) causa necrose dos rins e morte das células do pulmão, que terminam em asfixia (…). Proibido na Europa e até mesmo na China, onde é fabricado (…) [é] um dos mais usados hoje no Brasil [14]

Segundo o relatório “Um alerta sobre o Impacto dos Agrotóxicos na Saúde” – da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – 70% dos alimentos in natura consumidos no país estão contaminados por agrotóxicos. Desses, segundo a ANVISA, 28% têm substâncias não autorizadas. E mais de 50% dos agrotóxicos usados no Brasil são banidos em países da União Europeia e nos Estados Unidos.

Alexandre Saltz relata a sua luta contra o uso do agrotóxico FACET, da BASF, que causava sérias alterações biológicas em quem o utilizava:

um piloto agrícola que fazia aplicações desse produto começou a ter uma despigmentação na pele, ele era moreno, quase negro (…) ficou literalmente branco, por causa de um produto cujo princípio ativo era a quinona clorada. (…) conseguimos a liminar e a venda do produto foi suspensa e depois acabou sendo proibida.

Na mesma linha, Paulo da Silva Cirne ressalta que o tema da saúde dos trabalhadores tem grande importância na questão dos agrotóxicos: “a legislação brasileira exige que os postos de saúde e os hospitais façam uma notificação quando constatem que uma pessoa está contaminada pelo uso de agrotóxico ou está com algum sintoma de contaminação. O que se observou é um número muito baixo de notificações (…), abaixo da realidade.” E relata sua ação para que os profissionais de saúde – em todos os atendimentos que possam ter relação com a aplicação de agrotóxicos – busquem identificar os produtos aplicados, “inclusive, para podermos pressionar a ANVISA para que acelere alguns processos que proíbem determinados princípios ativos (…) já banidos nos países mais evoluídos”.

Eduardo Coral Viegas lamenta a impossibilidade de enfrentar isso com uma legislação estadual mais protetiva, pois “as decisões dos tribunais superiores são de que as leis estaduais não podem estabelecer regramentos mais restritivos ao uso de agrotóxicos do que a lei federal. Assim, se o governo federal autoriza que determinado agrotóxico seja comercializado no Brasil (…) um Estado não pode impedir a comercialização no seu território”.

Prosseguindo em sua análise, Paulo da Silva Cirne diz que em relação ao “receituário agronômico” – criado para coibir o uso inadequado de agrotóxicos – o produtor rural “necessita de receita e de um técnico que a assine” e “esse profissional deveria visitar a propriedade rural, (…) dimensionar adequadamente o tipo e a quantidade do agrotóxico para uma determinada cultura”. Mas, alerta ele, “o problema é que muitas vezes, o profissional que assina essa receita não vai até a propriedade verificar as condições acima mencionadas. (...) Nos hortigranjeiros, a situação é ainda mais grave, porque algumas culturas não têm um produto específico para ser utilizado. (…) em alguns casos, os produtores usam produtos inadequados para aquelas culturas, (…) sobras de agrotóxicos utilizados em outras plantações.” E defende a rastreabilidade total dos agrotóxicos usados, possível devido às normas existentes de comercialização e destinação final de seus recipientes.

Referindo-se ao Projeto de Lei Federal nº 3.200/2015, que altera a atual Lei dos Agrotóxicos (Lei n º 7.802/1989), Sílvia Cappelli afirma que se está tentando enfraquecer ainda mais a legislação, retirando competências do IBAMA e da ANVISA.

Isso é uma pressão articulada do poder econômico, inclusive internacional. Eles são realmente muito fortes. (…) As fábricas de agrotóxicos, de transgênicos e de medicamentos costumam ser as mesmas no plano internacional. Daí porque essa pressão dos agrotóxicos fica fácil de entender.

Daniel Martini complementa que o Projeto de Lei retrocede a níveis de proteção inferiores à Lei 7.802, o que é inconstitucional, já que em matéria de direitos fundamentais não pode haver regressão. Um exemplo elucidativo é adotar a nomenclatura de 'defensivo fitossanitário', eliminando a nomenclatura de 'agrotóxico'.

Já o Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos do qual o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul participa – denuncia que “se aprovado o PL não haverá necessidade de registro de herbicidas, tais como o 2,4D, o paraquat e o glifosato, por não se enquadrarem no conceito de 'defensivos fitossanitários' proposto.

Outro grave problema que tem sido enfrentado pelo MP-RS é a mineração de areia no Delta do Jacuí e no Lago Guaíba. Há cerca de três anos, houve grande movimentação da imprensa condenando a degradação ambiental decorrente da mineração de areia nos afluentes do Guaíba. Ato contínuo – diante da importância do insumo areia para a construção civil e para as obras públicas – diversas empresas passaram a defender a imediata liberação do Guaíba para a mineração de areia, sem qualquer estudo ou zoneamento ambiental. Até um mapa que indicava as áreas concedidas pelo Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM – a cada empresa apareceu.

Em relação a esse tema, Daniel Martini faz uma análise bastante abrangente:

O MP recomendou à SEMA que suspendesse não só a mineração, mas também a pesquisa, até que seja realizado um zoneamento efetivo do lago (…) A região hidrográfica do lago Guaíba concentra a parte final, ou a foz, de diversos rios e bacias hidrográficas. (…) pela sua característica de lago – ou seja, um ambiente lêntico, um ambiente que não tem escoamento, corredeiras, enfim – é um local de depósitos de sedimentos. (…) no Rio dos Sinos (…) o rio mais poluído do Estado (…) encontraremos cromo hexavalente sendo lançado no rio (…) um cromo que se acumula no organismo dos peixes, é altamente cancerígeno e transmissível, inclusive de mãe para filho pelo aleitamento materno, mesmo dez, quinze vinte, trinta anos após a ingestão pela mãe. (…) O Guaíba é manancial para o abastecimento público. (…) é possível que o tratamento público não esteja habilitado para fazer o tratamento desse elemento químico (…) [a] mineração no lago Guaíba é algo que precisa ser visto com cautela (…) hoje a mineração está suspensa por conta de uma ação do MP.

Na referida recomendação, o MPRS afirma “que eventual atividade de pesquisa ou de extração de areia no Lago Guaíba pode comprometer o abastecimento de água de Porto Alegre” e cita informação prestada pelo DMAE, em 16 de março de 2011, segundo a qual “As unidades de tratamento de água não são projetadas para atender alterações severas da qualidade da água, decorrentes do revolvimento de sedimentos” [15].

Sobre isso, Sílvia Cappelli complementa: “A Promotoria de Porto Alegre está tratando do tema (…) essa é uma questão tão importante para nós, ao menos da Região Metropolitana, que foi objeto de um processo criminal com prisão temporária de autoridades”.  Já Anelise Stifelman manifesta que sua “maior preocupação em relação a esse assunto são os impactos que a extração de areia no Lago Guaíba pode provocar no Parque Estadual de Itapuã”.

Tratando do tema de uma forma geral – incluindo a mineração de areia no rio Jacuí e outros afluentes do Guaíba – Alexandre Saltz comenta que o MP trabalhou na questão junto com Polícia Federal e com a Brigada Militar, fiscalizando as dragas no rio e os pontos de venda: “Isso foi um dos motores daquela ação civil pública que tramita na Vara Federal Ambiental que levou, inclusive, a Justiça Federal a suspender a extração de areia no rio Jacuí por muito tempo”.

Em que pesem as precauções indispensáveis em uma questão de tal relevância, no segundo semestre de 2016, a SEMA – pressionada pelo setor da mineração – apresentou ao Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba o documento “Zoneamento Ambiental para Atividade de Mineração no Lago Guaíba”, onde afirma que “cessada a restrição judicial, a FEPAM formou grupo de trabalho para a elaboração de Zoneamento Ambiental para atividade de extração de areia no Lago”. No referido documento é apresentado um mapa das áreas onde é autorizada a mineração de areia no Guaíba. Tudo isso, diga-se de passagem, antes da conclusão do Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Rio Grande do Sul.

Analisando esse documento, a Associação Amigos do Meio Ambiente (AMA) questiona:

O Relatório (…) apresenta (…) informações contraditórias, superficiais, desatualizadas (…). Questões fundamentais (…) como o conhecimento da dinâmica das correntes, da hidrossedimentologia, do perfil do subfundo, da composição físico-química do sedimento, do comportamento de plumas de dispersão, do impacto sobre a hidrodinâmica e as margens (...) não estão suficientemente elucidadas. (…). Nesse sentido, somos de parecer que o 'Zoneamento Ambiental para atividades de mineração do Lago Guaíba' não tem a mínima condição de ser colocado para votação no Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba.

Percebe-se que o tema envolve grandes interesses econômicos, os quais não devem prevalecer sobre o princípio da devida precaução.

A falta de acesso de boa parte da população brasileira aos serviços básicos de saneamento – água tratada, coleta e tratamento de esgotos, drenagem de águas pluviais, coleta e destinação de resíduos sólidos –, além de causar sérios problemas de saúde pública, tem tido um peso crescente na degradação ambiental. Isso decorre, por uma parte, do alto grau de urbanização do Brasil – onde quase 85% da população vive em áreas urbanas – e, por outra parte, do baixo percentual de cobertura desses serviços.

Referindo-se a isso, Ximena Cardozo Ferreira diz:

Temos problemas decorrentes da urbanização e o maior deles na bacia do Rio dos Sinos é o problema do saneamento. Temos uma deficiência imensa de saneamento. Não é à toa que o Rio dos Sinos é o terceiro rio mais poluído do país. (…) Em 2013, a média [de esgotos tratados] da bacia era em torno de 4%. Como exemplo posso citar o município de Novo Hamburgo, que atualmente tem 5% de esgotos tratados (…) os maiores entraves dessa bacia são a sua enorme urbanização, com pouquíssimo tratamento de esgotos, uma grande deficiência de saneamento e uma forte carga poluidora industrial.

O que é confirmado por Ricardo Schinestsck Rodrigues, que explica como vem ocorrendo a contaminação ambiental na bacia do Rio dos Sinos, após a mortandade de peixes de 2006:

a partir daquela situação de suma gravidade (…), os órgãos ambientais e o Ministério Público apertaram o cerco às atividades industriais, relativamente aos resíduos produzidos. (…) as atividades industriais se adequaram a essa situação. (…) Hoje, (…) a atividade industrial está longe de ser a que mais polui o Rio dos Sinos e seus afluentes. Hoje, o que mais polui é o esgotamento sanitário.

Analisando essa situação no Brasil, constatamos que, em 2013, somente 83% da população tinha acesso à água tratada e, em relação à coleta de esgotos, vemos que apenas 49% da população dispõe dela. Percentual que cai para 40% se considerarmos o tratamento dos esgotos. Isso que significa que mais de 100 milhões de brasileiros não dispõem desses serviços. Em consequência, a cada ano, só nas capitais brasileiras, são lançados na natureza 1,2 bilhões de m3 de esgotos, sem qualquer tratamento.

Para alcançar a universalização dos serviços básicos de saneamento, foram previstos investimentos de 500 bilhões de reais, entre 2014 e 2033. Os Programas de Aceleração do Crescimento 1 e 2 destinaram 70 bilhões para isso. Porém, com a aprovação no Congresso Nacional do Projeto de Emenda Constitucional que congela por 20 anos todos os gastos da União, estados e municípios (PEC241/PEC55), a meta de universalização do saneamento básico foi abandonada.

Comentando isso, Eduardo Coral Viegas afirma que a maioria dos municípios e estados não tem esgoto, só há 50% de cobertura de esgotos. E esse percentual muitas vezes diz respeito apenas ao afastamento do esgoto, não do tratamento até a última fase. “Depois do PLANASA, houve investimentos mais pesados no PAC1 e no PAC2, mas agora (…) os recursos acabaram. Vamos ficar muitos e muitos anos, décadas, sem investimento na área de saneamento”.

Opinião que é endossada por Ricardo Schinestsck Rodrigues:

o maior responsável pela poluição do Rio dos Sinos e seus afluentes é o esgoto doméstico. Portanto, é preciso incentivar as estações de tratamento de esgoto (…). Com a ETE Luiz Hall, o percentual de tratamento de esgotos nesta sub-bacia de Novo Hamburgo passará de 4% para 90%. (…) A maioria das (…) obras de saneamento eram provenientes do Governo Federal, dos Programas de Aceleração do Crescimento e certamente vão ser congeladas. (…) Hoje nós temos na região projetos para cinco estações de tratamento de esgotos, que dependem de verbas federais, que certamente vão ser suspensas. Em São Leopoldo, só uma delas atenderá oitenta mil pessoas. Acredito que a PEC 55 vai afetar diretamente o saneamento básico. Vamos ter freado o adequado tratamento dos esgotos.

Coral Viegas também questiona a privatização dos serviços de saneamento:

A privatização não funciona porque acaba com o 'subsídio cruzado', inviabilizando o atendimento às pequenas comunidades. No Rio Grande do Sul, temos 497 municípios. Desses 497 municípios, 317 são atendidos pela CORSAN. Dos 317 atendidos pela CORSAN, menos de 70 dão lucro; os outros dão prejuízo. Se houver abertura para a iniciativa privada, ela só vai pegar a parte boa. (…) a tarifa vai aumentar tanto nos municípios entregues à iniciativa privada, quanto na 'carne de pescoço' que ficará com o Estado, o qual terá de elevar o valor das tarifas para poder fechar as contas. (…) A iniciativa privada tem como principal objetivo o lucro (…) precisa reduzir despesas e aumentar receitas. No saneamento, deve funcionar exatamente ao contrário. (…) Não é possível pagar a universalização do saneamento e do esgotamento sanitário só com a tarifa, pois (…) tem que ser módica, justamente para que as pessoas tenham acesso à água e ao esgoto.

E Schinestsck Rodrigues complementa:

O Estado e os municípios ficarão com o ônus do saneamento básico. (…) A água é mercadoria lucrativa. Todo mundo vem extrair, tratar e distribuir. O esgoto é subsidiado. (…) Teoricamente, o esgoto deveria ser 1,7 vezes o valor da água (…). Hoje, em geral, o esgoto é cobrado no máximo 70% do valor da tarifa da água (…) ele é subsidiado pela água. Se passar a água para a iniciativa privada, o Poder Público Municipal vai assumir um grande passivo.

Sem dúvida o saneamento básico é uma das preocupações centrais de todos aqueles que lutam por um meio ambiente saudável e uma população sadia.

Não por acaso, todas as civilizações desenvolveram-se ao longo de grandes cursos d'água. A água é fundamental para a existência de qualquer atividade humana e da própria vida. Por isso, a sua degradação é uma questão de extrema gravidade, como acentua Daniel Martini: “em relação aos setores ambientais, eu colocaria, com absoluta prioridade, a questão dos recursos hídricos. A água é uma questão de sobrevivência das populações como um todo”.

Infelizmente, os rios, os lagos e o próprio mar são tratados como depósitos infinitos, que se autorregenerariam automaticamente. Ali são lançados os esgotos – na sua maioria sem qualquer tratamento – de mais de 6 bilhões de humanos; dejetos e sobras de milhões de indústrias e serviços; agrotóxicos e produtos químicos utilizados na produção agrícola e na pecuária; além de milhões de toneladas de lixo, geradas pelo consumismo doentio e devido à dita “obsolescência programada”.

Assim, convivemos, hoje, com um quadro de contaminação dos cursos d'água em todo o mundo, o que gera a deterioração da qualidade das águas do planeta e um elevado custo para torná-la passível de uso humano. No Brasil e no nosso Estado o quadro não é diferente. Segundo Daniel Martini, “temos, no Rio Grande do Sul, três dos dez rios mais poluídos do Brasil”!

No nosso Estado, entre as principais causas da degradação dos cursos d'água estão o lançamento de resíduos das lavouras – com elevada carga de agrotóxicos –, os dejetos industriais, os esgotos in natura e os resíduos sólidos (“lixo”), sem qualquer tratamento prévio.

Eduardo Coral Viegas relata que:

neste ano [2016],(...) tenho trabalhado (…) com o problema do lançamento no rio [Gravataí] das águas de lavoura com grande carga de material em suspensão, que é o lodo das lavouras. (…) Essa água, muito turva, está sendo captada pela CORSAN, que não dá conta de produzir o que normalmente produz (…) tendo que reduzir em até dois terços a sua produção. (…) a cada três horas era preciso parar a estação de tratamento para limpar os tanques de decantação. (…) 48 bairros ficaram desabastecidos em Gravataí.

Referindo-se à alteração do gosto e do odor da água de Porto Alegre, ocorrida em 2016, Ana Maria Marchesan diz o MP interditou a empresa CETTRALIQ, a causadora dessa alteração de gosto e odor na água. Mas os efluentes ainda estão no pátio da empresa. Deseja-se não só que os resíduos sejam retirados de lá, como também que a empresa indenize a sociedade pelos danos causados e ressarça o DMAE que gastou mais de três milhões de reais para fornecer água com a qualidade mínima.

Ximena Cardozo Ferreira – abordando a grande mortandade de peixes que ocorreu em 2006 no Rio dos Sinos – comenta:

era onde estava localizada a UTRESA, onde se identificou que houve um vazamento expressivo, que foi o determinante da mortalidade. A UTRESA é uma central de resíduos industriais (...) uma OSCIP (...) Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, sem fins lucrativos. (…) em 2010, houve outras duas mortandades menores (…). Nesses dois episódios (…) o rio estava sobrecarregado de matéria orgânica, com problemas quanto ao saneamento (…) mas também houve uma sobrecarga expressiva de resíduos industriais.

Sobre a mortandade de peixes ocorrida em 2010, Alexandre Saltz afirma que grande parte dos lançamentos ocorria em dias de chuva, em uma medida de economia de custos para a empresa.

Mas, essa contaminação não ameaça apenas nossas águas superficiais, mas põe em risco, inclusive, nossas águas subterrâneas, com destaque para o Aquífero Guarani, como nos alerta Eduardo Coral Viegas:

O Aquífero Guarani é um dos maiores do mundo (…) é um aquífero estratégico porque abarca oito estados brasileiros, incluída toda a região sul, mais o Uruguai, Paraguai e Argentina (…) não há gestão integrada entre os estados brasileiros. Cada estado é proprietário das águas que estão sob o seu território. (…) também não há gestão integrada entre os países onde se situa o aquífero. (…) A maioria dos poços, ao longo do território brasileiro (…) são poços irregulares, ilegais, que não são construídos de acordo com a técnica exigida, não têm prévia autorização. (...). Uma vez poluída a água do subsolo, não há como despoluir. (…) É diferente de um rio que, se o deixares correndo por quinze dias, sem poluir, se autodepura.

Em decorrência de uma denodada luta do MP do RS, tanto a Lei da Política Nacional de Saneamento quanto a jurisprudência da STJ passaram a exigir a outorga do Poder Público para a abertura de qualquer poço artesiano, não permitindo que isso ocorra onde existir rede pública de água potável.

Daniel Martini destaca, também, a elaboração em nosso Estado de legislações inovadoras e de iniciativas protetoras dos recursos hídricos. A Lei Estadual nº 10.350/94, Lei da Política Estadual de Recursos Hídricos, inspirou a Lei nº 9.433/97, Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos. E no Rio Grande do Sul estão os dois comitês mais antigos de bacias hidrográficas do país, o Comitê Sinos e o Comitê Gravataí.

Mas, preocupa Coral Viegas o fato de que até hoje não tenha sido instituída no Rio Grande do Sul a cobrança pela água, embora a lei estadual já tenha 22 anos. Também não há Plano Estadual e há um sistema muito deficitário de análise de outorgas: “Temos um inquérito civil tratando da criação de agências e da implementação da cobrança do uso da água”.

Como se vê, há muito que fazer nessa área.

Todos os temas destacados são considerados prementes para os promotores depoentes. Com respeito a expectativas, alguns, como Alexandre Saltz, são otimistas “(...), pois, com respeito à proteção ambiental hoje há um nível de consciência que não havia há alguns anos atrás”. Outros, como Annelise Steigleder, são pessimistas “Porque vejo que, mesmo no Ministério Público, dependemos de uma determinação judicial, atuamos sempre por amostragem, conseguimos identificar grandes temas e tentamos atuar. Mas é claro que não conseguimos atuar na política”.

Em termos de desafios para o futuro, muitos dos entrevistados apontaram o desenvolvimento do já iniciado trabalho em rede. Ximena Cardozo Ferreira considera que é preciso ultrapassar o âmbito institucional: “trabalhar em rede, mas não só em rede interna, trabalhar em rede externa, interinstitucional, porque são inúmeros órgãos envolvidos na proteção ambiental”. Ana Maria Marchesan vê com otimismo a implantação das promotorias regionais, mas considera que o cargo de promotor regional deveria ser único e não cumulativo com outra promotoria: “[deveria se]criar com um cargo de promotor específico, estrutura de servidores específica para isso, lugar, tudo”.

O reforço do assessoramento técnico também é sugerido. Annelise Steigleder sugere a existência de uma equipe técnica que trabalhasse em conjunto com as promotorias: “Teríamos que ter condições de atuar mais aparelhados, porque nós temos, diante de nós, um poder econômico fortíssimo”.

Ana Maria Marchesan também considera que seria interessante um trabalho mais articulado com o segundo grau:

O Ministério Público tinha que trabalhar como um todo, como um escritório de advocacia. Ter um procurador que desse continuidade ao nosso trabalho. (...) Talvez a criação de procuradorias especializadas em meio ambiente ou direitos difusos, como já existem em outros estados, talvez ajude. Mas eu ainda acho que o modelo de escritório de advocacia em que um procurador trabalharia conosco, ali, para mim, seria muito melhor.

Aliás, o trabalho conjunto, seja como ocorre na Promotoria do Meio Ambiente de Porto Alegre, seja em rede ou por bacia hidrográfica, é visto como uma marca de nascença e como um dos grandes diferenciais da área ambiental do MP que, dentro da instituição tem um alto índice de efetividade.

Historiadora Cíntia Vieira Souto

Historiador Raul Carrion

2017

 

 

Bibliografia

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. São Paulo: Atlas: 2016.

ARAÚJO, Suely Mara Vaz Guimarães de. Vinte e Cinco Anos da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente. Plenarium, v. 5, n. 5, outubro de 2008, p. 236-243.

FÉLIX, Loiva Otero. Rememorações para o futuro: histórias de vida do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Procuradoria-Geral de Justiça, Projeto Memória: Porto Alegre: 2001.

MARCHESAN, Ana Maria; STEIGLEDER, Annelise; CAPPELLI, Sílvia. Direito Ambiental. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013.

SEIDEL, Juliana Matos. Um problema urbano – gerenciamento de resíduos sólidos e as mudanças ambientais globais. Anais do V Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ambiente e Sociedade – ANPPAS. Florianópolis, 2010. Disponível em:

http://www.anppas.org.br/encontro5/cd/artigos/GT11-294-209-20100830220743.pdf.

SOUTO, Cíntia Vieira; TORRE, Márcia de La; SANSEVERINO, Patrícia (org.). Olhar Feminino: histórias de vida do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Memorial do Ministério Público, 2004.

TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. A fundamentação ética do estado socioambiental. (Tese de Doutorado). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Programa de Pós Graduação em Filosofia. Porto Alegre, 2012, 149 p.


 

[1] A exceção foi a entrevista de Cláudio Barros Silva, então Procurador-Geral de Justiça, que ingressou no Ministério Público em 1982.

[2] A Conferência de Estocolmo ocorreu na Suécia entre 5 e 16 de junho de 1972 com a participação de 113 países debatendo problemas ambientais.

[3] Artigo da Science aponta avanços e retrocessos no novo Código Florestal.  http://g1.globo.com/natureza/noticia/2014/04/artigo-da-science-aponta-avancos-e-retrocessos-do-novo-codigo-florestal.html. Acesso em 15 de fevereiro de 2017.

[4] Provimento nº 09/2000.

[5] As atas das reuniões, bem como os enunciados, podem ser consultados na página do CAOMA na intranet.

[6] Arquivo do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Inquérito Civil nº 003118/90.

[7] A Rede Ambiental foi criada pelo Provimento nº 12/2008 de 22 de fevereiro de 2008 revogado pelo provimento nº 52/2010.

[8] Não é possível saber se essa ação é a mais antiga ou se existe alguma anterior, pois nem todo o material da época está identificado e registrado no Arquivo Judicial. É a mais antiga registrada. Agradecemos a inestimável colaboração da Unidade de Gestão Documental do Ministério Público na pessoa do coordenador Emiliano Medeiros, e do Arquivo Judicial Centralizado, onde contamos com a diligente ajuda da historiógrafa Celeste de Marco.

[9] Dois terços da população mundial devem viver em cidades até 2030. http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/2016/05/dois-tercos-da-populacao-mundial-devem-viver-em-cidades-ate-2030/#.WL7W-tLyvcs. Acesso em 2 de março de 2017.

[10] Logística reversa diz respeito à ações para coleta e restituição de resíduos sólidos ao setor empresarial para reaproveitamento ou outra destinação final ambientalmente adequada.

[11] Programa de Gerenciamento de Resíduos Sólidos do Ministério Público RS. 2003-2026.

[12] Dado retirado da página da Comissão Institucional de Gestão Ambiental.

[13] O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um registro eletrônico obrigatório para todos os imóveis rurais e tem por finalidade integrar as informações ambientais referentes às Áreas de Preservação Permanente (APP), das áreas de Reserva legal, das florestas e dos remanescentes de vegetação nativa, das Áreas de Uso Restrito e das áreas consolidadas das propriedades e posses rurais no país.

[14] Nilton Kasctin dos Santos. Câncer e Agrotóxicos. 11 de novembro de 2016. http://intra.mp.rs.gov.br/site/artigos/43003/. Acesso em 21 de fevereiro de 2017.

[15] MPE. Ofício nº 812/2015.