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   Porto Alegre, quinta-feira, 28 de março de 2024

   
1961 - “Movimento da Legalidade” derrota o golpe militar

Raul K. M. Carrion

      Tratado como irrelevante pela historiografia oficial, o Movimento da Legalidade – que neste mês de agosto completa 59 anos – foi, sem dúvida, uma das maiores e mais radicais mobilizações cívicas do Rio Grande do Sul e do Brasil, impedindo – de armas na mão – que o golpe militar de 1961 se efetivasse.

Lembremos que outra tentativa de golpe já havia sido bloqueada, em 1954, pelo gesto extremo do suicídio de Getúlio Vargas e pelos massivos protestos que se seguiram a ele, comovendo todo o País. E, em 1955, o contragolpe preventivo do Marechal Lott – afastando Carlos Luz da Presidência interina e substituindo-o por Nereu Ramos, Presidente do Senado – foi a única maneira de garantir a posse de Juscelino Kubitscheck, ameaçado pelas articulações golpistas do Vice-Presidente Café Filho e do próprio Presidente da Câmara, Carlos Luz.

            Em todos esses acontecimentos – assim como em 1964 –, uma constante: de um lado as forças reacionárias, antinacionais e antidemocráticas, do outro as forças patrióticas e progressistas, que defendiam reformas estruturais para o País e a ampliação da democracia. Esse foi, na verdade, o pano de fundo da grande luta pela Legalidade.

            Quando Jânio, no dia 25 de agosto de 1961, entregou a sua carta-renúncia aos ministros militares e ao presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, não foi um gesto tresloucado do histriônico presidente do Brasil. Ao contrário – como o próprio Jânio Quadros confessaria anos mais tarde, no seu livro “História do Povo Brasileiro” –, foi um intento fracassado de auto-golpe, na expectativa de retornar “nos braços do povo”, com poderes absolutos e apoio militar:

Nessa altura Jânio Quadros não viu como malograr nos seus objetivos, ainda que com sacrifício próprio. Posto em movimento o esquema, compenetrados e ajustados os ministros militares quanto a esse objetivo essencial, a sua consecução não poderia falhar. (...) Seu raciocínio foi o seguinte: Primeiro operar-se-ia a renúncia; segundo, abrir-se-ia o vazio sucessório – visto que a João Goulart distante na China, não permitiriam as forças militares a posse, e destarte, ficaria o país acéfalo; terceiro ou bem se passaria a uma fórmula, em conseqüência da qual ele mesmo emergisse como primeiro mandatário, mas já dentro do novo regime institucional, ou bem, sem ele, as forças armadas se encarregariam de montar esse novo regime, cabendo depois a um outro cidadão – escolhido por qualquer via, presidir o país sob o novo esquema viável e oportuno. (...) O plano, porém, falhou exatamente na vacilação dos chefes militares. (...) João Goulart, compadecendo-se com a reforma parlamentar, desfez, tal vez sem sabê-lo, todo o plano concertado.”(1)

            O fato de João Goulart se encontrar na China Socialista e ser uma sexta-feira – quando o Congresso normalmente estava vazio – constituía o panorama ideal para o desenlace pretendido. Só que a artimanha foi mal calculada e “o tiro saiu pela culatra”. Devido à denúncia, feita no dia anterior por Carlos Lacerda, Governador da Guanabara, de que Jânio Quadros preparava um auto-golpe, os congressistas estavam em peso em Brasília e se revezavam na tribuna, debatendo os acontecimentos.

            O deputado Almino Affonso, líder do PTB, após ler a carta-renúncia de Jânio Quadros – onde este afirmava que “forças terríveis se levantam contra mim” –, acusou:

Nada, Sr. Presidente, neste instante permite, sob pena de nos considerarem ingênuos, de aceitar que o documento corresponde à verdade dos fatos. (...) O Partido Trabalhista Brasileiro, neste instante, fiel às suas tradições democráticas, não pode aceitar esta renúncia senão como um golpe em que o presidente da República pretende retornar ao governo à maneira de um ditador,disfarçado ou não, seja sob que forma for.” (2)

            E o deputado Gustavo Capanema complementou:

A renúncia é, por definição, ato unilateral. Irretratável. (...) A única coisa que nos cabe é tomar conhecimento. (...) o que se segue é a aplicação pura e simples da Constituição. Assume o governo o vice-presidente, pelo resto do período.” (3)

            O presidente do Senado, Moura Andrade, convocou então uma sessão extraordinária do Congresso, a qual, quando foi aberta às 16h45, contou com a presença de 45 senadores e 230 deputados. Depois de ler a carta-renúncia de Jânio Quadros, Moura Andrade afirmou: “a renúncia é um ato de vontade do qual deve tomar conhecimento o Congresso Nacional. Nos termos da Constituição, caberá ao presidente da Câmara assumir a presidência da República.” (4) Em seguida, deu posse ao Deputado Ranieri Mazzilli, como presidente interino, tendo em vista a ausência do Vice-Presidente João Goulart, em viagem oficial à China.

            Tão logo Jânio se tornou uma “carta fora do baralho”, os três ministros militares – Odílio Deniz, Sylvio Heck e Grun Moss – comunicaram a Mazzili que não aceitariam que João Goulart assumisse a presidência da República, ao retornar ao país. Esse veto militar atendia aos interesses dos Estados Unidos, que temiam que o Brasil adotasse uma orientação simpática a Cuba ou viesse a ter uma aproximação com a China ou a União Soviética.

            Chegada a notícia da renúncia ao conhecimento de Leonel Brizola, este tratou de comunicar-se com Jânio, colocando o Governo do Rio Grande do Sul à sua disposição. Esclarecido que este não fora compelido a renunciar, Leonel Brizola passou a defender o cumprimento da Constituição e a posse de João Goulart. Nesse contexto, no domingo 27 de agosto, Brizola fez um pronunciamento que teve repercussão nacional:

"O Governo do Estado do Rio Grande do Sul cumpre o dever de assumir o papel que lhe cabe nesta hora grave da vida do País. Cumpre-nos reafirmar nossa inalterável posição ao lado da Legalidade Constitucional. Não pactuamos com golpes ou violências contra a ordem constitucional e contra a liberdade pública. Se a atual Constituição não satisfaz, em muitos de seus aspectos, desejamos o seu aprimoramento e não sua supressão, o que representaria uma regressão e o obscurantismo. (...) Por motivo dos acontecimentos, como se impunha, o Governo deste Estado dirigiu-se à S. Excia., o Sr. Vice-Presidente da República, Dr. João Goulart, pedindo seu regresso urgente ao País, o que deverá ocorrer nas próximas horas. (...) O povo gaúcho tem imorredouras tradições de amor à Pátria comum e de defesa dos direitos humanos. E seu Governo, instituído pelo voto popular – confiem os Rio-Grandenses e os nossos irmãos de todo o Brasil – não desmentirá estas tradições e saberá cumprir o seu dever."(5)

            Diante da atitude golpista dos ministros militares, Brizola entrou em contato com o Comandante do III Exército – General Machado Lopes – para saber do seu posicionamento. Recebeu a resposta de que “como soldado ficarei com o Exército”. Esse diálogo deixou claro que Machado Lopes se subordinava à postura golpista dos ministros militares. Brizola ainda tentou o apoio de outros comandantes de Exército, no resto do país – como o gaúcho Costa e Silva –, mas em vão. Posteriormente, Brizola relataria: “com muita dificuldade consegui um contato telefônico com o general Costa e Silva, que comandava o IV Exército, no Recife. Nosso diálogo foi duro e violento. Respondi com a mesma moeda suas grosserias e agressividades.” (6)

            Apesar do quadro adverso, Brizola não se intimidou. Colocou a Brigada Militar e a Polícia Civil em rigorosa prontidão, fez com que ocupassem os pontos chaves da cidade e organizou a defesa do Palácio Piratini. Concentrou a maioria das tropas da Brigada Militar em Porto Alegre e requisitou todos os depósitos de combustível e de pneus.

            A Assembleia Legislativa – presidida pelo deputado Hélio Carlomagno (PSD) –, declarou-se em sessão permanente. Lideranças políticas, sindicais e estudantis reuniram-se na Câmara Municipal de Porto Alegre e decidiram realizar uma manifestação de rua. Saíram da Prefeitura e subiram a Borges de Medeiros, gritando palavras de ordem contra o golpe. Ao chegarem ao Piratini já eram cinco mil, exigindo o respeito à “Legalidade” e a posse de João Goulart. Falando da sacada do Palácio, Brizola aderiu a essa palavra de ordem. Estava começando o “Movimento da Legalidade”.

            Lideranças sindicais como Eloy Martins, Jorge Campezatto, Álvaro Ayala, Luiz Vieira, Lauro Hageman, Ony Nogueira e José Cezar Mesquita, e outros – a maioria do Partido Comunista do Brasil – criaram o Comando Sindical Gaúcho Unificado com a tarefa de organizar Comitês de Resistência Democrática (CRDs). A sede do Sindicato dos Alfaiates era o coração da mobilização sindical. João Amazonas – então Secretário-Geral do Partido Comunista do Brasil no Rio Grande do Sul – relataria, anos mais tarde: “Nós tomamos uma decisão: vamos organizar batalhões patrióticos. Ocupamos um prédio do governo que tinha ali, na Avenida Borges de Medeiros (...) organizamos os batalhões patrióticos por categoria profissional (...). Alguns dias depois, fizemos um desfile. (...) Tudo organizado por nós.”

            No prédio do “Mataborrão”, localizado na Av. Borges de Medeiros com a Andrade Neves, lideranças populares, sindicais e estudantis organizaram o primeiro “Comitê de Resistência Democrática” – com forte presença de trabalhistas, comunistas e socialistas –, o qual passou a alistar milhares de pessoas para lutar em defesa da Constituição. Ali estavam a poeta Lila Ripoll, organizando os artistas; o ex-deputado federal comunista Abílio Fernandes; o líder metalúrgico Elói Martins; Fúlvio Petracco, presidente da FEURGS; Fernando Almeida; Carlos Araújo; Victor Douglas Júnior; Luís Heron Araújo; e tantos outros lutadores do povo. Logo, os CRDs se espalharam por todo o Estado e mais de 100 mil gaúchos se alistaram para defender a Legalidade.

            Os dias que se seguiram foram marcados por desfiles dos batalhões operários da construção civil, Carris, estivadores, marítimos, ferroviários, metalúrgicos, bancários, enfermeiros, etc. e dos batalhões de secundaristas, universitários, intelectuais, artistas, militares reformados, Centros de Tradições Gaúchas, escoteiros, enfim a cidadania mobilizada.

            Sem titubear, a UNE decretou uma greve nacional em defesa da posse de João Goulart. Seu presidente, Aldo Arantes – que anos depois foi deputado federal pelo PCdoB – viajou para Porto Alegre, onde instalou a sede da UNE. Utilizando a “Rede da Legalidade”, convocou os estudantes de todo o país a resistirem ao golpe. O Governador de Goiás, Tenente coronel Mauro Borges Teixeira, lançou uma proclamação à nação, aderindo ao movimento liderado pelo governador do Rio Grande do Sul.

            Na Guanabara, a Comissão Permanente das Organizações Sindicais – dirigida pelos comunistas – deflagrou uma greve entre os marítimos, portuários, trabalhadores em transporte de passageiros e trabalhadores industriários. Os ferroviários da Leopoldina paralisaram suas atividades. No Rio de Janeiro, o Marechal Lott lançou um Manifesto denunciando o veto dos ministros militares à posse de Jango e defendendo o respeito à Constituição. Pouco tempo depois, foi preso pelos golpistas, na Fortaleza da Lage.

            Ao comunicar-se com o Marechal Lott, Brizola foi orientado a procurar os generais legalistas Oromar Osório – comandante da 1ª Divisão de Cavalaria de Santiago – e o Gen Peri Bevilaqua – da 3ª Divisão de Infantaria de Santa Maria – as duas mais poderosas do III Exército. Os dois generais se solidarizaram de imediato com a causa da Legalidade, inclusive, passando a pressionar Machado Lopes para que assumisse a defesa da Constituição. A seguir, Brizola passou a manter contato com as guarnições militares do interior do Estado, a maior parte das quais aderiu à Legalidade. A cada hora que passava, a posição golpista dos ministros militares perdia terreno no seio do III Exército e o próprio General Machado Lopes lhes informava disso em seus comunicados. (7)

            Brizola começou, então, a divulgar o manifesto do Marechal Lott, em defesa da Legalidade, junto com seu próprio manifesto, ambos amplamente distribuídos aos jornais, rádios e TVs. Seus discursos e entrevistas tinham enorme audiência e despertavam a cidadania rio-grandense. Um número crescente de pessoas passou a se concentrar na Praça da Matriz, em defesa da Constituição. Já passavam de 50 mil pessoas.

Mas, na medida em que as principais rádios divulgavam o manifesto de Lott, os seus transmissores eram silenciados e lacrados pelo III Exército. A Rádio Guaíba, cujos proprietários se negaram a transmiti-lo, foi uma das poucas que permaneceu no ar.

            Nas primeiras horas do dia 28 de agosto, segunda-feira, Brizola tomou conhecimento de que os ministros golpistas haviam ordenado ao III Exército e ao 5º Comando Aéreo que submetessem o Governo do Rio Grande do Sul pela força, se necessário bombardeando o Palácio Piratini. (8)

            O Governador tomou, então, a decisão de requisitar a Rádio Guaíba e passou a irradiar diretamente dos porões do Palácio Piratini, convocando o povo a vir até a Praça da Matriz, para defender a Constituição.

            Estava criada a “Rede da Legalidade”, que chegou a englobar mais de 100 emissoras de todo o país, denunciando os golpistas e convocando o povo brasileiro a defender a Constituição. Tropas da Brigada Militar e forças da Polícia Civil foram enviadas para proteger a torre e os transmissores, na Ilha da Pintada. Também a central telefônica foi ocupada e guarnecida por tropas da Brigada Militar. Ao mesmo tempo, Brizola requisitou mais de três mil revólveres à fábrica Taurus, em Porto Alegre, distribuindo-os aos Batalhões Populares.

            Os Ministros Militares chegaram determinar um ataque aéreo ao Palácio Piratini. A ordem era submeter Brizola e todos os que estivessem com ele. Contudo, na base aérea de Canoas, a tentativa dos oficiais aviadores – que obedeciam às ordens dos ministros militares – de levantar vôo para bombardear o Palácio Piratini, foi impedida pelos suboficiais e sargentos, que desarmaram os aviões e esvaziaram os seus pneus. (9) A seguir, o Tenente-Coronel Aviador Alfeu de Alcântara Monteiro, legalista, assumiu o comando interino da 5ª Zona Aérea e o Major Mário de Oliveira o Comando da Base Aérea de Canoas. Em represália, Alfeu de Alcântara será assassinado, na própria Base Aérea, em 4 de abril de 1964, logo após o golpe militar.

            Mas, a ordem dos golpistas foi reafirmada: “Calem Leonel Brizola!“ Tropas do III Exército – por determinação do general golpista Antônio Carlos Muricy – se deslocaram até a Ilha da Pintada para silenciar os transmissores da Rádio Guaíba e calar a “Cadeia da Legalidade”. Porém, no momento em que se preparavam para agir, o General Machado Lopes desautorizou a ação e determinou o seu retorno aos quartéis. Em seguida, solicitou uma reunião com Brizola, que a aceitou, desde que ela ocorresse no Palácio Piratini. Não sabendo qual seria o posicionamento do General Machado Lopes, Leonel Brizola fez um pronunciamento dramático, defendendo a Legalidade e afirmando que lutaria até o último alento contra qualquer golpe militar:

nós não nos submeteremos a nenhum golpe, a nenhuma resolução arbitrária. Não pretendemos nos submeter. Que nos esmaguem! Que nos destruam! Que nos chacinem neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade do seu povo! Está rádio será silenciada tanto aqui como nos transmissores, mas não será silenciada sem balas. (...) Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto (...). Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra da desta Nação. Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória. (...) Que decolem os jatos! Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e do sacrifício do povo! Joguem estas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência do nosso povo.”(10)

            O povo respondeu ao pronunciamento de Brizola afluindo em massa ao Palácio Piratini e à Praça da Matriz. Em pouco tempo eram mais de 100 mil pessoas. Pressionado por essa grande mobilização popular e por seus principais comandantes, Machado Lopes tomou a decisão de não mais acatar as ordens dos ministros militares e apoiar uma saída Constitucional para crise. Como relatou o jornalista Adaucto Vasconcellos: “O general Machado Lopes, comandante do III Exército, à frente de um grupo de oficiais, se aproximava do Palácio lentamente. A massa começou a deslocar-se na direção dos militares. Foram segundos da mais alta dramaticidade. O Hino Nacional, brotado da garganta de milhares de pessoas, petrificou os oficiais. Eles pararam e cantaram com o povo. Machado Lopes estava emocionado e trêmulo. O III Exército estava aderindo à Legalidade.” (11)

            Unificado o Rio Grande do Sul com a adesão do III Exército e seus 120 mil homens – o mais poderoso do País –, reforçado pela Brigada Militar e com o apoio massivo da população, equilibraram-se as forças no tabuleiro nacional, ainda mais que os próprios golpistas não confiavam na unidade do seu campo, onde cada vez mais se levantavam vozes dissonantes. Quando o Presidente Mazzilli – submisso aos Ministros Militares – nomeou para o Comando do III Exército o General Cordeiro de Farias, em substituição a Machado Lopes, este afirmou: “prenderei o substituto, tão logo ponha os pés no Rio Grande do Sul!

Rapidamente foi montada a defesa de toda a região Sul. Divisões do III Exército, oriundas do Rio Grande do Sul, atingiram em marcha batida Santa Catarina e o Paraná, dirigindo-se à fronteira com São Paulo. O litoral gaúcho foi ocupado por tropas da Brigada Militar. A imprensa noticiou a obstrução (fictícia) da barra de Rio Grande para impedir o acesso das belonaves inimigas à Lagoa dos Patos e a Porto Alegre. O grupo antiaéreo de Caxias do Sul deslocou-se para Porto Alegre. A disposição de luta e a consciência popular cresciam à medida que o tempo passava. A resistência ao golpe transformava-se cada vez mais em um levante popular que envolvia as próprias Forças Armadas e punham em risco o regime

Diante do imponderável, tanto as elites dominantes quanto os altos mandos militares passaram a trabalhar por uma saída negociada, que evitasse a guerra civil. Essa saída foi a casuística emenda parlamentarista, votada em dois turnos nos primeiros dias de setembro e aceita a contragosto pelos ministros militares golpistas.

            Finalmente, em 7 de setembro de 1961 – data da Independência Nacional –, João Goulart assumiu a Presidência da República, sob um regime parlamentarista. O povo, os trabalhadores, os militares democratas – conduzidos por um grande e destemido líder – haviam vencido! A vitória não havia sido completa, mas, talvez, tenha sido a possível naquelas circunstâncias. O povo havia mostrado a sua vontade e a sua força.

            O grande e heróico Movimento da Legalidade foi por muito tempo ignorado pela grande imprensa e pela historiografia oficial. A ordem era manter o episódio no mais completo esquecimento, para que não fosse lembrada a vitoriosa mobilização patriótica e popular que – liderada pela figura intrépida de Leonel Brizola – alterou os rumos da história do Brasil, detendo o golpe que se gestava e derrotando os planos das elites conservadoras.

            No ano em que comemoramos os 59 anos da Legalidade e que novas ameaças à democracia surgem no horizonte – orquestradas pelos mesmos que historicamente sempre se opuseram a qualquer avanço social –, o exemplo de determinação e de coragem que Leonel Brizola e o povo gaúcho demonstraram em circunstâncias tão difíceis devem servir-nos de modelo e inspiração.

            Com certeza, em tais momentos, não há espaço para tibiezas e vacilações!

 

Historiador Raul Carrion - Presidente da FMG-RS

Atualizado em 25 de agosto de 2020

 

NOTAS

(1) QUADROS, Jânio e ARINOS DE MELO FRANCO, Afonso. História do Povo Brasileiro- Vol. VI. São Paulo: Jânio Quadros Editores Culturais S.A., 1967, pp. 241-242.

(2) MARKUN, Paulo e HAMILTON, Duda. 1961: que as armas não falem. São Paulo: Editora SENAC SãoPaulo, 2001, p.115.

(3) Idem.

(4) MARKUN...,Idem, p. 116.

(5) BRIZOLA, Leonel. In: MACHADO LOPES, José. O III Exército na crise da renúncia de Jânio Quadros. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1980, p.41-42.

(6) FELIZARDO, Joaquim. A Legalidade - último levante gaúcho. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1988, p. 47.

(7) “Assistindo ao entusiasmo do povo gaúcho pelo acatamento da Lei, ouvindo matraquear a Cadeia da Legalidade e auscultando a opinião dos Comandos das Grandes Unidades que compunham o III Exército, confirmei a impressão de que qualquer solução que implicasse o veto à posse do Sr. João Goulart na Presidência da República levaria à guerra fratricida, com todas suas maléficas conseqüências.” (MACHADO LOPES, José, idem, p. 45.)

(8) “1- O gen. Orlando Geisel transmite ao gen. Machado Lopes, comandante do III Exército, a seguinte ordem do Ministro da Guerra: O III Exército deve compelir imediatamente o Sr. Leonel Brizola a por termo à ação subversiva que vem desenvolvendo (...) Faça convergir sobre Porto Alegre toda tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente (...) empregue a Aeronáutica, realizando inclusive o bombardeio, se necessário.” (Mensagem do gabinete do Ministério da Guerra ao III Exército, às 6h da manhã do dia 28.08.61. In: FELIZARDO, Joaquim, idem, p. 32.)

(9) “(...) decidiram os sargentos e suboficiais, com apoio de cabos, soldados e taifeiros, apoiar o Movimento Legalista. (...) No comando do 1º do 14º Grupo de Aviação de Caça estava o Major Aviador Cassiano. (...) O major Cassiano resolve acatar a ordem de bombardear o Palácio Piratini, dada pelos Ministros Militares. (...) os suboficiais e sargentos do Esquadrão de Caça estavam detidos no hangar, dominados pelos oficiais comandados pelo major Cassiano. Os sargentos que se encontravam no cassino da base, aproximadamente 100, tomaram uma decisão (...) ‘– Vamos libertar os colegas do Caça. Não vamos permitir a decolagem dos aviões, vamos assumir o controle interno da base’ (...) Lá chegando libertamos os colegas. (...) O Major Cassiano sentiu que a partir daquele momento avião nenhum decolaria, como de fato não decolou. (...) os sargentos e suboficiais, sob liderança do segundo sargento Lague, determinaram aos soldados que esvaziassem os pneus dos aviões, o que foi executado, deixando as aeronaves inoperantes para decolagem.(...) os aviões não bombardearam o Palácio somente porque, dias antes, os sargentos de armamento do esquadrão desligaram o sistema de bombas deixando-os, assim, inoperantes.” (CALIXTO, Ney de Moura. Os Sargentos da Legalidade.Canoas: Prefeitura de Canoas – Secretaria de Comunicação, 2011, pp.17-22, 34.)

(10) LEITE FILHO, Francisco das Chagas. El Caudillo Leonel Brizola. São Paulo: Editora Aquariana, 2008, pp. 121-124.

(11) FELIZARDO, Joaquim, idem, p.41.