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   Porto Alegre, sábado, 20 de abril de 2024

   
A difícil efetivação da Função Social da Propriedade

Raul K. M. Carrion

A lei é filha da história - Migalhas

A Função Social da Propriedade, em especial do solo urbano, está hoje consagrada na Constituição da República e na legislação infraconstitucional, mas ainda não conquistou cidadania na realidade do país e no mundo jurídico – extremamente conservador e patrimonialista – que teima em ignorá-la. Só a luta dos interessados nela – a imensa maioria do povo brasileiro – Será capaz de trazê-la para o mundo dos fatos

O “DIREITO ABSOLUTO” DE PROPRIEDADE

O liberalismo tem como um de seus pilares básicos o direito de propriedade privada, com caráter absoluto, individual e inviolável. A criação do Estado é justificada, inclusive, pela defesa da “sacrossanta” propriedade privada. Nesse sentido, as palavras de Locke, em seu Segundo Tratado, são elucidativas: “Por Poder Político, entendo o direito de fazer leis com penalidade de morte e, por conseguinte, com toda penalidade menor, para o fim de regulamentar e conservar a propriedade”.

Essa concepção da propriedade individual e absoluta – inscrita de forma clássica na Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa (1789) e no Código Napoleônico de 1804 – inspirou a Constituição brasileira de 1824 que em seu artigo 179, inciso XXII, afirmava: “É garantido o Direito de Propriedade em toda sua amplitude. Se o bem público, legalmente verificado, exigir o uso e emprego da propriedade do cidadão será ele previamente indenizado do valor dela”.

A primeira Constituição republicana, de 1891, em seu artigo 72, parágrafo 17, manteve esse direito “absoluto”: “O direito de propriedade mantém-se em toda a plenitude, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia”.

O Código Civil de 1916 (só recentemente alterado) recepcionou essa visão do direito absoluto de propriedade, em seu artigo 524: “A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”.

Ou seja, todos esses instrumentos legais abordaram o interesse geral – no que diz respeito à propriedade – como exceção e a eventual necessidade da sua desapropriação, por interesse social, ficou condicionado à uma prévia indenização, em dinheiro vivo.

De forma pioneira, mas fugaz, a Constituição de 1934 inovou, dispondo em artigo 113, alínea 17: “É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar” –, introduzindo pela primeira vez a questão do caráter social da propriedade.

A Constituição de 1937 retornou, em seu artigo 122, alínea 14, à concepção do direito absoluto e irrestrito de propriedade, assegurando “O direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia”.

Em seu artigo 141, parágrafo 16, a Constituição de 1946 manteve a mesma formulação – “É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro” –, mas em seu artigo 147 dispôs que “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá (...) promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”, retomando a temática do caráter social da propriedade.

A Constituição de 1967 – depois de afirmar em seu artigo 150, parágrafo 22, que “É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro” – inscreveu em seu artigo 157, inciso III, o princípio da “função social da propriedade”.

O FIM DA “PROPRIEDADE ABSOLUTA” NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Mas, é somente na Constituição Cidadã de 1988 – no contexto da redemocratização do país – que se romperá, de forma explícita, com a concepção secular da “sacrossanta e absoluta propriedade privada”.

Uma primeira mudança sutil, mas fundamental, é que o encabeçamento de seu artigo 5º assegura o “direito à propriedade”, conceito bem mais amplo do que o mero “direito de propriedade”, que se resume ao direito dos que já possuem propriedades, ou seja, dos “proprietários” e não dos “despossuídos”. O mesmo artigo, em seu inciso XXIII, determina que “a propriedade atenderá a sua função social”, reforçando a visão de que o direito à propriedade é inseparável do cumprimento de uma função social.

Mas serão seus artigos 182 e 183, que formam o “Capítulo da Ordem Urbana” – pela primeira vez inserido na Constituição Brasileira – que irão fundamentar a exigência do cumprimento da função social da propriedade privada e pública do solo urbano. Assim, o seu parágrafo 2º exige que a cidade cumpra suas funções sociais, de forma a garantir o bem-estar de seus habitantes, dispondo que “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.

Indo mais longe, o parágrafo 4º do artigo 182 afirma que “É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais”.

Já o seu artigo 183 dispôs sobre o “usucapião especial urbano” – reduzindo para cinco anos a posse sem contestação de uma área urbana, para a aquisição do direito à sua propriedade – e criou o “direito real de uso para fins de moradia” nas terra públicas (que não podem ser usucapidas).

Na medida em que o artigo 182 da Constituição Federal remete aos Planos Diretores Municipais a definição dos parâmetros que determinam o cumprimento ou não da função social da propriedade do solo urbano, ressalta a importância da inserção de forma explícita nos Planos Diretores Municipais dos instrumentos de efetivação da função social da propriedade, contidos na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade. Além disso, são necessárias leis municipais que identifiquem os “vazios urbanos” existentes (privados e públicos) e determinem o seu parcelamento ou edificação compulsórios.

Por fim, em seu artigo 170 – que enumera os fundamentos da ordem econômica –, logo após o princípio da “propriedade privada” é colocado o princípio da “função social da propriedade”, deixando claro que só é legitima e tem amparo constitucional a propriedade que cumpre sua função social.

O “ESTATUTO DA CIDADE”, A “MP 2220/2002” E O NOVO CÓDIGO CIVIL

É importante ressaltar que a “lei federal” referida no artigo 182 da Constituição só veio a ser aprovada treze anos depois, em 2001, sendo conhecida como o “Estatuto da Cidade”. Ela regulamenta esses dois artigos e avança em diversos outros instrumentos urbanísticos:

No que se refere ao parcelamento ou edificação compulsória, a Lei dá o prazo de um ano – após a notificação do proprietário do imóvel – para que ele apresente o seu projeto à prefeitura, e concede mais dois anos – a contar da aprovação do projeto – para o início das obras.

Não sendo atendidos esses prazos, a Prefeitura pode aplicar o IPTU Progressivo no tempo, podendo dobrar o seu valor a cada ano, durante cinco anos, até uma alíquota máxima de 15%.

Após, se o proprietário continuar descumprindo sua obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá efetivar a desapropriação do imóvel, através de títulos da dívida pública – autorizados pelo Senado Federal – pagáveis em dez anos pelo valor venal (declarado para fins de IPTU) da terra, descontados os acréscimos de valor devidos a obras públicas realizadas após a notificação inicial.

Da mesma forma, o Estatuto da Cidade regulamentou o “Usucapião Especial Urbano” e previu novos instrumentos de política urbana, como a instituição de “Zonas Especiais de Interesse Social” e a criação de “Operações Urbanas Consorciadas” – que torna possível a parceria entre o proprietário privado da terra e o poder público, para viabilizar que o solo urbano cumpra com sua função social.

Já a Medida Provisória 2220/2001 regrou a “Concessão de Uso Especial para fins de moradia” (no caso de imóveis públicos não utilizados ou subutilizados).

Ainda expressando os avanços ocorridos na Constituição de 1988 e no Estatuto da Cidade no referente à função social da propriedade, o novo Código Civil de 2002, em seu art. 1.228, parágrafo 1º, também limitou o direito de propriedade ao dispor que: “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados (...) o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico (...).”. E, em seu parágrafo 4º determina que “O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras ou serviços (...) de interesse social e econômico relevante.” Nesse caso, segundo o seu parágrafo 5º, “o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores”.

A LUTA PELA EFETIVAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

No entanto, decorridos vinte e sete anos da promulgação da Constituição da República, quatorze anos do Estatuto da Cidade e treze anos do novo Código Civil, o que se verifica é que suas disposições inovadoras só têm sido aplicadas em raríssimos casos. E, o que é pior, em muitos casos com sérios retrocessos, como em decisões judiciais liminares de “reintegrações de posse” em relação a ocupações consolidadas (posse superior a um ano e um dia) de famílias de baixa renda, sem considerar se a propriedade cumpre ou não a sua função social e sem sequer ouvir as famílias a serem despejadas. Situações que têm se multiplicado devido ao boom imobiliário que vem ocorrendo no Brasil, devido aos inúmeros programas sociais de moradias para as populações mais carentes. Tudo isso em clara contradição com o disposto na Constituição Federal, no Estatuto da Cidade e no Novo Código Civil, muitas vezes “esgrimindo” as normas caducas do velho Código de Processo Civil (1973), instituído pela ditadura militar...

O que já levou ao absurdo de comunidades que possuíam o direito à concessão de uso especial para fins de moradia sobre as áreas que ocupavam – de acordo com o disposto na Medida Provisória 2220/01 (transformada em lei) – terem as suas casas destruídas por ordem judicial. O que comprova a grande inércia e o conservadorismo do pensamento jurídico brasileiro em relação ao direito de propriedade. Seja porque nossa cultura jurídica patrimonialista resiste em aceitar os novos princípios constitucionais e legais – especialmente a exigência do cumprimento da função social da propriedade –, seja porque a nova legislação urbanística, sobretudo a de âmbito municipal, elaborada para atender os novos dispositivos constitucionais e legais, ainda não foi incorporada à prática social.

Tampouco tem sido realizado – seja em nível federal (sequer pelo Ministério das Cidades!), estadual ou municipal – qualquer levantamento ou censo das áreas urbanas não-utilizadas ou subutilizadas – os chamados “vazios urbanos” –, em relação aos quais deve ser exigido o parcelamento ou a edificação compulsória. Sem o que o parágrafo 4º, do artigo 182 da Constituição Federal vira “letra morta”

A tudo isso, se soma o fato de existirem no Brasil mais de sete milhões de imóveis edificados vazios, que não cumprem portanto a sua função social. Uma quantidade maior que o déficit habitacional quantitativo existente. Infelizmente, esses imóveis não são alcançados pelo artigo 182 da Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade, apesar de estarem descumprindo a função social da propriedade, exigida por esta mesma constituição em seus artigos 5º e 170.

Por tudo isso, impõe-se a realização de um amplo debate sobre a função social da propriedade do solo urbano – seja no campo doutrinário, seja no campo de sua aplicação prática – buscando superar esse conservadorismo jurídico que não encontra respaldo nem na carta constitucional, nem nas atuais normas legais.

Ao mesmo tempo, é preciso aperfeiçoar a legislação vigente dispondo, por exemplo, que nos casos de reintegração de posse de áreas de ocupação consolidada de famílias de baixa renda, se exija dos proprietários a comprovação do cumprimento da função social do seu imóvel e que as famílias ameaçadas de serem desalojadas sejam necessariamente ouvidas.

Concluímos lembrando que Reforma Urbana não se confunde com a mera construção de conjuntos habitacionais para as populações empobrecidas, em regiões cada vez mais distantes, geralmente desprovidas dos serviços básicos e sem acesso aos benefícios da cidade moderna. Não existe verdadeira Reforma Urbana sem desatar o “nó da terra” e efetivar a função social da propriedade, democratizando o acesso à terra urbanizada, bem localizada, para a ampla maioria da população, especialmente a mais excluída.

Raul K. M. Carrion